sexta-feira, 3 de julho de 2009

Surto

Surto
"Criar é desatar angústias".
Gaston Bachelard.
E foi como se ventasse, e gelasse os pés num dia de desabrigo, de desatino. Gelava o quarto. Entravam navalhas de frio. Diante da opressão: o grito. Para dentro, mudo, sem eco. Ecoou nas entranhas. Fez-se sangue.
Queriam que babasse, que seu cérebro explodisse em mil pedaços e, assim, o garoto pobre, porém inteligente, perderia o próprio rumo, ficaria somente só, interditado pela família, visto como louco por todos, para servir somente para um negócio: que lhe subtraíssem o sangue. E nem sabia porque. Acordava e via somente sombras no quarto. "Uma mente brilhante", diziam. Mas se era delírio a visita constante de um estranho, porque então as mãos formigavam e as veias ficavam doloridas? Como se o sangue dali fosse sempre extraído, jorrasse e tivesse sempre um cheiro de mistério.
Sonhava muito. Voava, combatia o mal, era Don Quixote lutando contra os ventos e expulsando as tempestades. Vários seus iguais voavam mais baixo que ele, a sensação de ir e vir era constante. Daqui a pouco também o céu ficaria congestionado. Mas delirava. Nem era homem... era um andrógino, sem sexo. Fechara os olhos: vinha outra onda. Enfrentaria essa e outra e outra.
O coração disparou assustado. Ao lado, também outra muda criatura. Mesmo em sua insensatez, lembrava-se dela: tinha olhos pretos, fortes e firmes. Figura franzina, o vestido sempre lhe escorria pelo corpo e ficava-lhe bem. Mas não era alta. Diziam que ela cantava em noites de insônia.
Ele, pelo menos, nunca viu.
Do cabelo, nada mais possuía, tinham-lhe arrancado tudo. Fora encontrada rastejante nas ruas e levada também para aquele lugar.
Ela gritou fundo tudo que podia. Berrou. Louca, sólida. Inconsequente. Arrancou-se-lhe toda a dor contida no centro de seu tórax. Desmaiou. Não sabia aonde estava.
O delírio veio-lhe como um presente: corria pelas ruas escuras, nua, feliz, e chovia. E era uma chuva de libertação. Dessas que somente caem em sua cidade. Curou-lhe todas as feridas. Sentiu-se amparada.
Mas era um engano. Tratava-se de um mal pago enfermeiro que pretendia prender-lhe à cama. Odiava-o. Ele lhe detinha a liberdade. Diante de uma negativa honesta, ele lhe aplicara um sedativo fatal. E então, angústia: o quarto girava. Não mais saía. Tudo trancado.
Estrela muda, escondida no fundo do barro.
Que há de criar-se, qualquer dia, não importa
. Sua cantoria calou-se. Era somente sonho. O moço ao lado (aquele dos olhos na testa ) vociferava: "mil impropérios, mil impropérios. Mais dois mil impropérios!!!".
(Moça fina de bom trato não pode reproduzir palavrão - dissera-lhe sua mãe. Por isso não conto isso aqui) . E o enfermeiro evaporou-se dentro do espelho. Era um mistério.
Então ela criou coragem. Fechou os olhos. Até estava crescendo... crescia, crescia, crescia. Pelo alto da cabeça, por debaixo dos pés, pelos lados e pelos altos. Já ia até se tornando um gigante até que. Algo se quebrara, devia ter sido um copo, algo assim.
Tudo real. Não havia nada lá fora. Sem mais delongas, resolveu que escreveria então. Outro dia criaria uma história, quem sabe. De acordo com os almanaques. Tudo como deve ser.
A escritura é sua e é secreta, dita em sussurros. Para não ser escutada e nem mesmo lida. Vomitou. Que lástima! O tempo...
E ninguém compreendeu.



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