
"Em primeiro lugar, o amor-próprio." (Simone de Beauvoir)
Amizades iam e vinham. Éramos atraídos uns pelos outros pelo próprio espírito; a matéria era o que menos contava, embora inevitavelmente fôssemos parecidos. Tínhamos interesses semelhantes, e era sempre alguém defendendo essa ou aquela tese; este ou aquele teórico. Mesmo nossos inimigos eram inteligentes e afiavam nossas espadas quando nos envolvíamos em debates, então tornavam-se apenas oponentes momentâneos; possuir inimigos era coisa de espíritos retrógrados. Alianças temporárias eram possíveis: no Brasil tudo é relativo.
(Fui salva outro dia por um mendigo. Antes disso não sabia nada sobre negócio de estuporar...)
Uns não sabiam jogar com a arte da conversação. Outros não tinham a firmeza necessária e iam para o combate aflitos. Mas não era preciso ter medo: o abismo era ilusão. A onda gigantesca à entrada do santuário também era ilusão. Bastaria que a pessoa desse um passo a frente e começaria a rir-se pois o asfalto novamente surgiria. Vencer a ilusão era um desafio, mas que deixaria a todos contentes. Fora-lhes até sugerido que se abraçassem, num fraternal "Dia do abraço". Mas nem todos aceitavam: queriam a eterna juventude, isto é, o encantamento; tocarem-se seria um sacrilégio, pois isso lhes quebraria a face.
(Ora, para espíritos envelhecidos um só creme não é o bastante).
Que atravessassem a rua. Nada lhes aconteceria.
Há pessoas que não aceitam o jogo da oposição. Conseguem se tornar intragáveis com o passar do tempo...mesmo assim exercitávamos a tolerância em alguns casos. Sentarem-se na mesma mesa às vezes era complicado para alguns grupos que não concordavam com pontos fundamentais.
"Não convide esse"
"convide aquele"
"Essa aqui tem relações impróprias... "
"Se chamarem esse tal negócio não vai dar certo..."
Há pessoas que simplesmente não comungam dos mesmos valores e inevitavelmente são excluídas das rodas. O afastamento às vezes não tem motivo algum e segue os misteriosos caminhos da intuição.
(Ou da política):
"Essa garota cheira mal"
"Essa menina aí agora está na condição de fantasma!"
Somos todos preconceituosos no final. Mas quando amamos é de verdade.
Com Raimunda foi assim. Caminhava sempre corretamente fazendo movimentos marciais achando que tudo fazia sentido e que já sabia de tudo porque tinha lido tudo sobre Machado de Assis. Recusava debates e tinha respostas na ponta da língua. Mas aquele Alienista sempre lhe surtava. Porque uma coisa sempre se transformava em outra e aquilo lhe era misterioso para seu mundo organizado. Mas sempre achava explicações definitivas e se empenhava na construção de um manual. Trabalharia correto na educação. Era pedafofa, digo pedagoga.
Até que um dia, chegada quase ao cume da montanha, lhe disseram que ela não era ela mesma; era outra. Pensou até que aquilo fosse brincadeira, mas fora convidada a se retirar porque não subvertia. Fora-lhe sugerido que ocupasse outra cadeira porque aquela seria agora sua verdadeira identidade. E, assim, tal como uma hipnose, acreditara piamente que era outra. Sendo outra teria amizades outras. Outros desafios. Se empolgara até, palestrara, usara datashows, encenara perfis: ela era outra. Conversara com seus antigos conhecidos e lhes convencera de que tudo mudava: tinham que ler mais. Além disso, seu grupo tudo podia. Não havia limites para a ocupação. Conquistara novos amigos e novas relações. Tudo perfeito (nas aparências). Os dias se seguiram. A roda girara. Mas chegada numa grande curva, numa distração, num desatino, durante uma piada, o Alienista lhe caíra dentre as mãos e o verde tornou-se vermelho. Os loucos agora eram certos. Os certos eram loucos. Era hora de mudar e então partira obrigatoriamente. Fora-lhe ofertada uma fuga. Mas das amizades, só restaram estilhaços: sabiam que nem tudo que reluzia ouro lhes parecia.
Já com Ana foi diferente. Ela era a outra que a outra ocupara-lhe. É verdade que ficou sozinha, teve crises várias: de choro, de pesadelos, de saúde, mas já tinha sido considerada normal e pacata em algum dia. Esvaziara toda sua página porque lhe disseram que ela teria que recomeçar. Disseram-lhe que tinha errado. Seu estado de errância incomodava. Para ela era apenas aprendizado. Seu caminho de vida doce lhe parecia e se recusava a abandoná-lo. Mas recusara o sem sentido porque o próprio caminho e a expressão eram seu sentido. Disse-lhes que "não" e terminantemente "não": porque já tinha onze páginas escritas no pergaminho. As ofertas para a compra de seu curriculum continuavam, e eram cada vez mais sombrias: caíra de quinhentos reais para cem; chegou até a pensar que seria melhor vender logo as onze páginas antes que elas significassem centavos...
(Isso aí ela sonhou, mas quando acordou sua gata tinha reaparecido esquelética e faminta após dezesseis dias de sumiço!)
Então na história de vida de Ana bloquearam-lhe a comunicação porque a outra já lhe encenava com perfeição. E ela gostava de sandálias de dedo e a outra não. Não tinha exatamente em sua vida algo que seguisse religiosamente. Talvez somente sua própria vida acadêmica. Gostava das terapias todas: das alternativas. Mas nada de radicalismos, sua geração procurava relativizar. Adorava analisar porque isso eram traços de sua espécie, coisa de cientistas. Daí que, em sua trajetória, ser ela mesma tornou-se um problema para aqueles outros que foram revelados anteriormente. Mas insistia. Lutava. Preferia a guerra ao ostracismo. Pedira Socorro, daqueles mudos e ancestrais e agora somente aguardava. Sua história não estava terminada.
Tinha amigos em toda parte naquele labirinto, e esses se pressentiam e alguns nem precisavam de apresentação.
Quando fazemos signos secretos eles olham e vêem. Correm e acodem porque se comunicam pelos sentidos e se salvam a todo momento. De mãos dadas e sem correntes, caminham em um movimento internacional por tempos menos sórdidos.
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