quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

DAS MARGARIDAS. DESENCONTRO.


"Il y a toujours quelques murs qui nos empêche de passer"
(Saint-Exupéry)

"O poder não ri."
(Bakhtin)

No início até que prometia. Lia muito, discutia bastante, se colocava até - era o que os professores diziam. Mas não se sabe que acidente fora esse no caminho. Talvez um louro sedutor. Afinal, o discurso proferido em suas jovens orelhas era o de que se casasse imediatamente.
Aliás, quanto a isso, a mulher teria dois caminhos, segundo tal indivíduo, naquela sociedade às avessas: ou serviria a vários homens, prestando serviços à comunidade (digamos assim) ou seria a esposa de apenas um, mas era necessário que se ressaltasse: não teria o direito de escolha.
Seria simplesmente sequestrada um dia, sem ao menos conhecer o noivo e, vestida de uniforme de noiva, pelo simples fato de comparecer à cerimônia, meio que dormente, seria considerada casada. Nem o noivo veria sua face. Casaram-se? Foram apenas salvos da perseguição pelo papel. Não importava. Seguiriam pela vida. Quem sabe um dia até se encontrassem - ou nunca.
Margaridas... sonhavam a princípio com o Príncipe. Mas nas cobranças da vida o materialismo tornara-se prioritário. Tanto uma delas desejara que encontrara.
Sim, sua carruagem era encantadora, seus olhos eram maquiavelicamente azuis, se considerava irresistível, jovem, porte não tão alto, mas bem configurado. Era como ele se via e ela assim ouvia dizer. Quem não aceitasse sua corte seria considerada homossexual.


Passara por ela, chamando. Ela embarcara. Tinha encontrado o Príncipe. Então ele começara a lhe passar as lições. Toda a tabuada. Primeiro que a aparência era tudo (dizia com um certo ar professoral): seria melhor que alisasse os longos fios cacheados, clareando-os um pouco, quem sabe. Um beijo sedutor lhe era logo dado para que se convencesse. Passava os dedos dentre seus cabelos e reclamava.


Mas ela nunca notava esse tom. Estava já cega. Correu logo até o salão mais próximo e obedeceu. Era lhe dito aos ouvidos que não perdesse aquele bom partido. Passearam, apresentara-lhe vários tipos de carros, ela agora sabia tudo sobre veículos, motos, carros e motores.


Mas esse homem seduzia e para ela tal oportunidade lhe fascinava e ele para ela representava sempre o mistério: acima dela. Apaixonara-se. Sua palavra era tudo.
Dissera-lhe então - e sua persuasão lhe envolvia - que todos tinham um preço. Todos seriam capazes de se vender: era só descobrir o valor. Quis debater sobre tal idéia incômoda para sua mente ainda em desenvolvimento e comentou a todos sobre isso. Seu discurso gerou várias controvérsias. Contou-lhe sobre o debate, entusiasmada. De imediato, já vira outra face diante de si: deparara-se então já com outro namorado: transfigurado em ódio, vociferando que não mais subvertesse...


Ela olhou mas não viu. Simplesmente não entendeu. Era o seu deus que falava.
O moço de imediato começou a se distanciar cada vez mais e a faltar aos encontros marcados. Resolveu então que a colegial deveria conhecer mais pessoas, amigos, sair, se divertir então.
A festa foi bastante sugestiva e ela, levada de carro novo, com todo aparato típico de quem entra para esse tipo de negócio, fora apresentada à sociedade. Todos sorriam, cúmplices.
Então ele lhe disse, de supetão, já com outro ânimo, enroscado já a outra mulher, que tudo já havia mudado. Margarida expressou seu desgosto.


(Mas nem tanto)


Ele era então o amante de outra. Ah! DE OUTRA!!!


Chamou-a então, discretamente, em um canto. Novo discurso: achava que ela deveria se liberar mais, se conhecer mais, ele a sentia um tanto quanto recalcada. No seu ponto de vista, a moça deveria sair com outros rapazes e experimentar bastante (de tudo); e ele já havia se apaixonado por outra.


Na verdade - dissera-lhe - eles já eram namorados, possuíam já uma história juntos, tinham se conhecido em outro Estado, haviam de imediato se amado, sua conta bancária, então, "você sabe" prometia... Sua nova namorada morou um tempo em Paris, (comentara-lhe, enquanto fazia as apresentações) e já se considerava seu marido. Assinariam logo. Ela era com certeza sua alma-gêmea...e era essa sua proposta. Até se disporia a casar-se com seu nome verdadeiro...


A garota viu e sentiu imediatamente sua inutilidade, e achou que ele se utilizava, para se dirigir a ela, de um certo tom malvado, de vingança inexplicável.
"Por quê?!!!!" - gritava em seu íntimo.


Mas sorria, forçadamente: deve-se sorrir sempre - lembrara-se de uma das aulas.


Mas não queria ser confundida com aquela sua vizinha, que tinha tanto senso crítico que era apelidada de "ranzinza", dentre outros superlativos.


Humilhada. Olhos lacrimejantes. Com ódio. Sentara-se. O casal logo lhe dera as costas.


Ora, obedecera-lhe em tudo. Cumprira ordens. Efetuara todas as etapas do ritual. Aprendera certos truques necessários. Mas naquele momento encontrava-se estupefata. Disfarçou o que pode, manteve as aparências (isso ela bem aprendera com ele). Prendeu o choro. Respirou.
No outro dia não queria mais sorrir. Aquele desconhecido que conversara com ela na festa confidenciara-lhe que alguns homens gostam de mulheres poderosas. Outro lhe comentara que melhor seria se ela não sorrisse demais. O poder não ri. Então resolveu que queria ser poderosa.
Após muitas dias sem receber qualquer telefonema, resolvera reclamar da solidão. Ele então lhe enviara aquele novo amor. Mas não. Queria outro. Recebera um prontamente nas características encomendadas. Depois disso, proposta de trabalho. Pronto. Resolvera-lhe o problema.


Depois, nova reclamação. Então lhe lembrara de uma daquelas regras básicas já proferidas, e pedira-lhe uma posição: ou ela seria de todos ou de apenas um. De imediato, disse que preferiria se casar. Tal se tornara logo uma idéia fixa.


As novas tecnologias poderiam também lhe ajudar nesse seu intento. Caçava, insistentemente. Invadia mesmo contas alheias e, é claro, sabia tudo sobre seus pretendentes. A regra era também que logo obtivesse um cartão de crédito. Estava indo bem na profissão. Tinha vários. Mas muitas vezes sua mente romântica ainda de adolescente conflitava com os interesses do grupo.


Então queria casar. Aceitava ser surpreendida. Até chegava a sugerir como seria o ocorrido. Pedido aceito. Sequestro. Uniforme. Tudo feito. Problema resolvido. Mas o noivo queria consumação, não só o papel.


Terminou a noite amarrada e amordaçada.


Desencontro





“Já não tenho nada a temer.
Atingi o fundo.
Não posso cair mais baixo que o teu coração”.
(Marguerite Yourcenar, Fogos).

Era a suprema transgressão. Entregar-me assim sem nenhuma máscara, nenhuma regra, nenhuma prisão. Afogava-me em você, me encaixava no teu corpo, te sentia, me sentia. Conhecer era a grande heresia. No teu rosto eu me reconhecia e não tinha mais nenhum entrave, nenhum medo. Mas a  felicidade nunca nos foi realmente oferecida. Fugimos dos olhares inquisidores e  sem nenhum pudor,  arrancamos o proibido aos deuses, feito Prometeu, o acorrentado. Pagamos o preço. Feito hereges queimados numa fogueira. Insultamos os seres astrais com nossa completude. Teus olhos falavam o linguajar estranho das serpentes, traidores, obliqüos, sedutores. Tudo foi tão súbito e forte, como um vendaval que nos arrancasse do chão. Havia apenas a linguagem do desejo. Apenas a pele, a profundidade, a superfície, a retórica dos corpos e o bater forte de nossos corações. Foi aí que comi o tambor e você bebeu do címbalo. Tudo então se perdeu. A condenação foi certa e abrupta. Você sabia que eu não podia. Você era meu inimigo oficial. Tive de fugir, e quando voltei já era tarde. Eu, Helena. Você, Páris, de Argos.
O golpe fulminante da fatalidade. Foi naquela noite que os deuses completaram sua obra. Estava exultante, mas o tempo em si estava estranho, calado, como se algo se tramasse no infinito. E algo realmente chegava ao fim. Senti o punhal sendo cravado em meu peito e, de súbito, ela veio – a caveira incandescente da realidade. Ela me olhava, eterna, e doía nos ossos e na alma. Me matou. Me mostrou a decadência, a ruína, teu rosto de então. Não mais me reconheceste e daí escondi as lágrimas, as palavras não-ditas, silenciadas e incompreendidas.
O rapto, o encontro foi só um riacho efêmero de felicidade. Terrível a revelação da Morte: você estava lá: pequeno, mesquinho, acabrunhado, sem aura, sem brilho – mortal. Vi o  navio partindo. Sem leme, entre brumas, apenas partindo. Eu sabia que a  energia do que roubamos era  sagrada e imemorial e que ela pertencia somente aos deuses, eles, que nos concediam apenas alguns segundos desse presente, e ainda assim, se fôssemos dignos e tivéssemos o Direito. Eles nos castigaram, reles mortais, com o esquecimento da Promessa.  Não mais nos reconhecemos, eis tudo. Ao teu lado, aquela que foi ao teu encontro estava feliz, ela não era grave, não fazia perguntas, era apenas uma estátua com um sorriso eterno nos lábios, não fazia parte, apenas figurava na tua composição, na tua companhia, com ela não havia dor, não havia sanções. Perdemos. Ou não? Nos desencontramos. Não havia mais o rio, o doce rio onde eu mergulhava.. Não havia mais encanto. E a eternidade e o sol misturado ao mar. O real era muito triste então. A caveira queimava e me mostrava o que eu não queria ver. Mas ela se impunha e me encarava serena. Morri. Renasci. E no dia seguinte, lá estava eu, ressurgindo das cinzas e levando a vida com o vento. Estava chegando o momento de partir novamente...
Petrina Dhaza 24/10/00 17:54:16 e 20:16:00.




quinta-feira, 29 de outubro de 2009

ESTALINHA


"Ailleurs ce sera toujours mieux."

Rimbaud.




Deslocados somos todos

Sempre há um lugar para ocupar

Mas

Na dança da vida

Somos levados
Na luta, resistimos.
E fica sempre a sensação

do deslocamento

de tempo

de lugar

Então buscamos

porque sempre é em outro lugar

A colina.


(1a. versão em 17/05/2009. Eu não aguento copiar).


PS: Foi efeito do shampoo. Subitamente, queimara tudo. Cabelos, rostos, sorrisos começavam a se manifestar...amarelos... estupefatos. Talvez estivessem sujos (os dentes), posto que não fossem completamente inocentes e nem sinceros...Havia sempre a presença da pimenta... Ela se autodenominava com orgulho "a psicopata do shampoo": era de fabricação própria. Queria modificar todas as fórmulas. Não resistia. Via um shampoo e depois dizia que tudo se apagava em sua mente. No outro dia a vítima gritava com ódio: mais um!!!!! O último foi um (shampoo) de chocolate.
Como reação a esse texto, fui quase envenenada e sofri. Mas, na luta, resisti ao assalto dos bandidos, mesmo cercada. São meus inimigos todo aquele que apoia o tráfico, a prostituição e o crime.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

CTRL C + CRTL P: geração copy cola

"Yo no creo en las brujas,
pero que las hay,
las hay."
(Provérbio espanhol)


O chip "Controle do Imaginário" nasceu da necessidade de estuporar uma mente zoneada que se encontrava en train d'être naufragada porque surtara.
Vou contar-lhes, caros senhores: ainda formulava hipóteses.
Porque nunca estivera sequer em presídio nenhum para entender do que se tratavam tais vocábulos. Seriam conceitos? Códigos? Possuiriam sentido somente em seus respectivos contextos? Que contexto seria aquele? A se julgar pelas poucas palavras e pelo tom de voz, por vezes ameaçador, chegou a deduzir que tais conversas e mensagens seriam captadas talvez de um presídio...dirigidas a ela ou a várias pessoas... ou quem sabe, de uma clínica em que se encontravam tais "loucos": assim alguns se afirmavam, para escapar da jaula.
Era como se ouvisse rádio 24 horas por dia. Ouvia, ouvia, ouvia. Seus pais comentavam que ela emudecera. Mas apenas queria entender...
Ouviu falar que o seu chip se chamava "controle do imaginário". Seria vingança por conta de suas pesquisas? Sim, há alguns anos atrás fizera pesquisas sobre o imaginário amazônico...mas ainda hoje escutara que tal chip se relacionava com o controle de algo pernicioso... se for isso mesmo, por ela, a praga seria logo dominada. Mas se fosse fácil assim...
No sonho tudo é possível. Sonhava bastante.
Fazia algum tempo que se reprimia. Não se sentia bem. Esperavam que escrevesse.
Narcisa copiaria.
Requenguela copiaria.
Outras repetiriam em alto e bom som o que ela estava pensando, ainda elaborando.
Merde mère olharia. E aprovaria?
Merde fille (todas da família O.) estaria tentando encontrar respostas no computador. Encontrava-se talvez na tal da clínica. Tinha surtado - ouvira em um dos chips. Sua crise: teria ela nascido de um ovo quente? Ou de um chocadeira? Sua imagem no espelho quebrado não lhe devolveria tudo que investira na construção de sua personagem. Tinha voz arrogante e e mesmo quando usava a máquina simuladora de vozes, era reconhecida, porque seu tom era reconhecido e não conhecia aquelas pessoas pessoalmente. Desmascarar era fácil: era só dar atenção aos detalhes.
Certo dia as vozes reclamavam: parece que estavam todos alquebrados, além de quebrados. Moi aussi.
Chá de alho.
"Não é bom. Entope o nariz".
"Depende."
"Alho de viciado eu não quero. Vou comprar um extra-forte e verdadeiro." (Essa sou eu)
E escutava de tudo naquela espécie de rádio ligado 24 horas.
"Qual o seu chip?" - perguntavam.
"Ah, o meu é erótico. Fico escutando gravações o dia inteiro de alguém que me manda fazer sexo..."
Certo dia pensei que tinha um desses na cabeça. Resolvi sugerir:
"Mas você pode usar o toilette mesmo ninguém vai se incomodar..."
"No meu eu escuto aula de língua estrangeira, o francês..."
"Mas como?! Você já não fez seis anos de língua? Não conhece o francês?"
Resolveu filosofar. Não queria se sentir burra, porque desempregada. Parece que ficavam lhe repetindo e então escutara repetidas vezes:
"Tá com defeito esse chip, ele faz perguntas toda hora, se tal frase é mesmo francês ou não...ele tem dúvidas, muda palavras... questiona...EU QUERO TROCAR!"
Começar do início é bom:
"Quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?"
"Qual era a cor do cavalo branco de Napoleão?"
"Qual o seu nome, Patrícia?"
"Mas surtar é o quê?"
"Mas o que é parar de subverter? O que é subverter?"
(Recebera mensagem certa vez acompanhada de um certo tom terrorista: tinha que parar de subverter!!! Era a própria.)
Parecia até esquizofrenia. Mas não era. Não aceitava ordens. Preferia tentar dar as ordens. Só para testar a sua teoria. Ora, queria saber se era a tal da doença...
"Por que você não se suicida?"
"Vá primeiro que eu vou depois!"
"Eu quero que você escreva, surte, para depois a gente copiar!!!"
"Mãe, a gente não consegue nem plagiar mais..."
"Ah, vá para a..."
"Vamos juntos, Senhor!"
No seu ponto de vista de cientista social, acredita que o campo da subversão no momento está confuso, ou seja, até a presente data, o que tem observado é que seus agentes parecem pensar (sic!) em modificar as estruturas ao promoverem ações, tais como: furtos, roubos, tráfico (outro dia conto como), prostituição, e ainda planejando ações mortíferas a terceiros (esses que não) e, ainda, agindo no sentido de aplicarem golpes aos ditos bem colocados - considerados lendas em seus setores de trabalho.
Estudam com cuidado a vítima. Invadem o que for possível: computadores, casas, armários, vestidos: querem subverter. Importa mesmo é que o lucro venha. Não têm ética nenhuma. Não existe neles a noção do que é certo e do que é errado.
A profa. que havia se identificado como chilena em Congresso na Argentina, subitamente resolve ser outra e se apresenta como Chefe de um Orgão vital no Brasil com outro curriculum de alguém que ela julgava desaparecida.
"Então é melhor intimidá-la" - diz la Merde mère.
Mas mesmo a população encontra-se em crise e já se recusam à obediência cega.
"Era para intimidar." - diz um ambulante.
"Eu não, eu tô é com pena dela!"
Achou que isso tudo lhe soava muito como um telemarketing. Por falta de oportunidades havia trabalhado em uma empresa por exatos três meses e não suportaria mais do que isso.
Por conta disso, um de seus quatro chips deveria ser de telemarketing. Era chato, cansativo e toda objeção colocada pelo "cliente" (eu) era logo combatida. A tal Dama deveria ser oriunda do telemarketing... deve ter feito escuta em vários colegas e não prestou muita atenção que a reunião era sobre a reforma agrária e não era sobre o desaparecimento de vários intelectuais das Universidades brasileiras...
Desse modo, deve ter sido assim que ouvira falar da tal "Política de ocupação"...
"Sabe o que foi? Não fui à reunião... eu estava de Chilena lá na Argentina...depois fui para Bariloche...depois eu não sei mais o que aconteceu..."
Nem pensou duas vezes (ela): mandou fazer identidade nova.
Começou a mandar na casa. Decidiu controlar e organizar: achou que eram todos dementes.
"Não podemos aperfeiçoar esses chips?"
"Tem gente que é demente mesmo."
"Não subvertem nada..."
"É melhor colocar para ver se eles melhoram..."
"Assim: gente travada? Sexo."
"Mudinhos: o do bate-papo."
"Aqueles que não fazem nada: tem que subverter! Faz assim: promessas o dia inteiro, provocação, quem sabe no final do dia eles não vão subverter?"
Meu chip, assim concluo até agora, é de Brasília: portanto eu não acredito em nada.
Que fazer?






quarta-feira, 23 de setembro de 2009

PÁ VIRADA



"SEMPRE QUE CHOVE
Sempre que chove
Tudo faz tanto tempo...
E qualquer poema que acaso eu escreva
Vem sempre datado de 1779!"
Mario Quintana



Pareceu que iria chover uma daquelas chuvas arrasadoras, cruéis e revoltosas e repletas de raios e trovoadas, daqueles raios emocionantes chuvas que lavam um coração e levantam-lhe a coragem. Mas que nada! Não acontecia nada... Ficara esperando na mesa tocando piano, impaciente. Nenhuma tempestade para animar. Nenhum banho para tomar. Nenhuma promessa cumprida. Nenhum contrato chegado. Sequer qualquer telegrama. Aflição. Tomaria algo? Era seguro? Melhor seria um self-service. Melhor nem comer nada... ora, os disponíveis para o mercado de trabalho não têm escolha. Venha o que vier.
"Vamos negociar..."
"Desde que seja dentro de certas condições..."
Alguns compreendiam o que queria dizer. Outros não. Mas vale um recuo do que uma tragédia que cause calafrios. Não venderia seus bens culturais de modo algum. Mas às vezes não acreditava nessa situação. Estava imaginando. Não havia nada lá fora. O céu de chuva até passara. As nuvens negras se dissiparam.
Levantara-se sem comer nada. Apenas água mineral.
(Era bom para a dieta).
O aleatório até que às vezes lhe salvava e então em seguida resolvera jogar.
Até pensara que havia ganho. Mas que nada! Era tudo ilusão! Não deu GATO!!! Perdera a aposta e o almoço. Mas haviam lhe dito que sim, tinha acertado. Zoneou. Mas que nada! COELHO!!! Por aqui as apostas são permitidas. Não jogara escondido. Aprendeu que o importante numa competição era participar. Mas não gostava disso. Era retórica. Gostava mesmo era de ganhar.
E então não suportara a frustração. Surtara. Gritar não adiantava. Quem sabe se caminhasse...caminhara muito pouco. Ainda não se sentia bem. O ódio lhe corroia as entranhas e gostaria muito de ter o poder mental de explodir certas pessoas inconvenientes e até com instituições, prédios e edifícios...mas era pura catarse. Era pessoa pacífica. Quem sabe um filme de ação lhe melhorasse o humor...sentia que lhe ludibriavam...não se conformava...tentavam lhe convencer de sua loucura. Ao menos parecia que as vozes em sua cabeça começavam a se calar...ao menos isso. No entanto sua paciência já não mais existia. Sentia-se esgotada. E se assumia apenas como desconfiada diante de situações estranhas.
Tinha sérios motivos para se identificar como tal: como desconfiada.
Então continuaria sua batalha.
Navegar era sempre preciso - já dizia o poeta que quase se afogara.
E a virada, Senhores, teria que ser olímpica.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

ECLIPSE

Foto: minha. Eclipse. P.I.G.S. (2009)


"Um eclipse escurece teu céu nessa caminhada"


(do Livro da Sorte)







Chuva com sol deveria ser prenúncio de algo. Signos de água talvez fossem favorecidos naquela queda. Mas nada disso. Tudo transparecia igual. Caminhava sob um céu azulado e o sol negava-se a se pôr.



"Subverta!" - dizia um gravador. Eram tantas as repetições que não sabia mais o que fazer. Enlouquecia. Ouvira dizer que esse efeito alucinógeno se tratava de um mero chip. Ficara perplexa: o foco era o cérebro. A voz lhe dissera que era difícil desativá-lo pois parecia que ele era de diamante, ela lhe contava histórias e no final negava-as todas. A conversação inútil era freqüente e incomodava.


Chegara a pensar que fosse esquizofrenia mesmo. Quem sabe um medicamento, uma internação resolvesse esse mistério. Ou quem sabe, encontrasse socorro na religião. Mas era tudo tão estranho: enviava ordens e também as recebia. Conversava mentalmente como se estivesse escutando um rádio numa longa e cansativa entrevista que parecia não ter fim. Evidentemente que questionava e analisava tais ordens: eram coerentes? Trariam consequências futuras?



"Subverta!" - dizia a voz insana.



Mas sua subversão era até clássica. Gostava dos desafios mas também crescia no silêncio. Nem sempre desejava a tal da subversão. Tudo muda e já sabemos quantos naufragaram nessa queda, obedecendo, seguindo pretensos mestres.



Com o tempo, tivera enjôos e calafrios. Surtava. Chegara a tomar um mingau inteiro por conta daquela voz que lhe sugerira tal coisa:


"Toma o mingau! É para desligar o chip!"


Temos todos momentos de fraqueza e quem sabe aquele eco se calasse. Tomou sofregamente.



Sim, até pensou que sentiria sono. Mas adora nadar e na sua alma às vezes encontra o rumo certo. Dormir era fuga mesmo.



Insuportável. Chegara no limite. A tal da voz diversas vezes lhe sugeria absurdos, colocando-lhe em situações de risco:



"Compareça em tal lugar, em tal hora, Fulano de Tal ou seus amigos estarão todos lá"



"Nós estamos chegando! (Mas não chegavam)



"Estamos agora na porta do santuário...digo...não! É do cemitério!"



Resistia. Julgava em seu íntimo que se tratava de uma artimanha. Mas lhes comunicara que a linguagem dos arcanos é sempre eterna e o portal não se abre para qualquer um. Diante do fato sabia que qualquer pisada em falso poderia lhe ser fatal. Mas temia pela sua securidade. Também às vezes duvidava de tudo isso e dizia para si mesma que tudo isso era paranóia ou mistificação.



Porém quando estamos cercados não há muito o que fazer. Fazemos escolhas de vida ou de morte. Um jogo de xadrez difícil. Tudo escuro. Perseguição. Será que a Hora era chegada?



Então invocamos a voz longínqua do papagaio interior... sua luz talvez nos sugerisse um caminho e nos acalmasse. Talvez ele mostrasse uma saída para a gruta. Fugimos da situação.



A aflição continuava e clamamos pelo oráculo. Olhamos para o sagrado. Mas o que foi ouvido não foi muito agradável. Cortes certas vezes são inevitáveis pois uma peça mal-colocada no veículo pode explodir o carro inteiro.



A história...sucessão de eventos nem sempre compreensíveis para a razão. Ela nos mostra o quanto um acaso qualquer, fortuito, pode definir uma vida. Às vezes uma pedra apenas desmorona com o edifício inteiro. Daí, certas escolhas são fatais.



Naquele dia, entre um bicho e outro, em um dia atípico e bizarro, enquanto caminhava entre vários desatinos, um rosto apenas se revelara no meio da multidão. Ele apontava para a liberdade.


quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Cozinheira preta



"I sacrifice my cock on the altar of silence"
(Jim Morrison)


"Se eu cozinho é meu?"

(Anônimo)

Cozinha e filosofia sempre caminharam juntas. Cortava-se um tomate: uma barreira. Cortava-se outro tomate: outra barreira. Durante a cebola chorava muito porque todos choram nessas horas. Punha-se sal mas começava a duvidar também do elemento. Além disso, temia a pimenta, mas sem ela nada de movimento. Eram muitos detalhes nessa arte e nada disso bastava. Tinha-se que se pensar nos convidados. A carne estava sendo escolhida. As batatas eram sem vício e se deliciava, mas se estranhamente ardessem na garganta parava para analisar.
Morreria pela boca?
Para um cozinheiro talvez o mais importante seja o processo de preparação e não o prato final, ou seja, a própria viagem. O cru e o cozido. A cara e a coroa. Dizem que apressado come cru, mas nunca se sabe... não seria melhor mesmo comer cru, porque os ditos primitivos sabiam das coisas? Então somos civilizados e esperamos o cozimento, mas não se sabe a hora em que tudo chegará ao ponto...mas e se a comida perder o sentido?
Vieram os convidados. Eles materializaram-se. Mas para eles muitas vezes a comida não era conhecida e nem sempre sabiam dos protocolos. Apenas a ordem era dada e sem explicação. Daí que a comida talvez não ficasse palatável ao final, porque era pura castração exterminar aquele momento de criação. Talvez terminasse sem sabor, sem gosto, sem alegria.
(Sua mãe, por exemplo, detestava o azedo; ela, por sua vez, amava o doce.)
De qualquer modo, encarava qualquer prato: coisas de antropóloga. Mas nem sempre conseguia fácil digestão.
Uma vez, por uma fome de banana, ficara três horas sem respirar. O efeito se repetira com um suco comprado na rua, e também com uma água de côco.
Era impressão dos sentidos, "coisas de sua cabeça" - diziam-lhe. Porém garantia que era verdade. Ficava sem ar. Sufocava.
Eram presentes (e ela adorava presentes).
Mas precisava ser assim? Assim é que se contratavam atualmente? Testes...testes...testes... a que hora pedira tais testes?
A galinha realmente se tornara picante a ponto de causar um ressecamento total, quase sem solução. Seria a pimenta? Aonde teria sido comprada? Outra vez seu prato preferido causara-lhe estranha convulsão. Ouvira dizer que alguns ingredientes já eram vendidos envenenados. Sendo assim, estressados aposentados, ingênuas donas-de-casa, desempregados, viúvas, órfãos, aflitos - todos se tornavam alvo.
E tais convidados gostavam apenas de morar na filosofia. Isso não era muito - acreditava. Quem sabe encontrassem um lugar aprazível...
Mas o cozimento era destinado ao silêncio.













quarta-feira, 9 de setembro de 2009

SACRIFÍCIO


“Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
“Que farei eu com esta espada?”
Ergueste-a, e fez-se.”
(Fernando Pessoa,
in Mensagem)


“I have Said to the Worm: Thou art my Mother & my sister.”

(William Blake).

De cabeça para baixo, os abutres comem-te o fígado como se não houvesse fim. Teu ouvido cola-se ao chão e a tudo que desprezaste: a mortalidade, os conflitos, o sofrimento. Agora o Destino te agarra e faz com que esfregues o nariz no chão, para que conheças a realidade da lenta ondulação dos vermes juntamente com a vida dos insetos. E nem podes gritar: roubaram-te a voz. Então simplesmente ficas e abordas este abismo. Encontrarás a inspiração nessas profundezas infernais. Sim, aceitas o sacrifício e o experimentas como uma iniciação. Mais uma morte.
Já dentro do templo, ultrapassaste o limiar, agora – lá dentro – querem ainda cortar-te a cabeça, e depois disso, arrancar-te o coração. Se conseguirem, ficarão extasiados e gargalharão por muitos séculos até que o portal entre os mundos se abra novamente e outro seja enviado.
Com as sombras lutando para te derrubarem, invocas todos os dias a Luz Maior e eles se afastam, furiosos. Você olha e vê que só a pedra negra afunda na água, não você, o sacrifício. Há dias que clamas por nossa ajuda e nós te atendemos e levamos embora toda energia enviada para que percas a rota. Você sabe: a medida que sobes, desfolha-te, perdes cada vez mais partes da vestimenta. Então já chegaste na encruzilhada e te despersonalizaste até onde fora possível. Passaste a andas nua. Pelas ruas, na multidão. Não sabia quem não conhecia o ver, mas desde então só caminhavas nua. De manhã, de noite, adquiriste a nudez como verdade. Mas irás além disso, dessa nudez, e agora te restam os cabelos e até o fim eles expressarão o retrato da tua alma, refletindo o sol ou rechaçando Saturno. Escuta isso, dependurada e presa como estás aí agora mesmo: sobre Saturno, é bom que se diga, foi ele quem te ordenou agora esta execução e é ele quem passeia pelos jardins e olha se fazes ou não a tarefa: ele quer te engolir como devorou a todos os seus filhos – só para que não perdesse o poder de sua mão. E você planta o milho, ele cresce, a terra é fértil, porque nas tuas mãos há fogo. E Saturno, aflito, sabe disso tudo e não aceita a velhice, não aceita que chegou o fim de seu reinado. Agora é Júpiter quem irá reinar - assim sempre foi a história - e será preciso que ocultes a luz que emana de tuas mãos, (você sabe, governas a mudança, viste no sonho como movias a mesa e a trazias de volta até o ponto desejado), caso contrário, Saturno saberá e te devorará até essa luz. Então aceite o sacrifício de Saturno: isso é um desafio, ele não aceita ser vencido por pouca coisa. Quer que o combate esteja em seu próprio nível: então a espada, em tuas mãos, que te fora concedida, precisa ser levantada, do amanhecer desde que surja a primeira fagulha de luz, até a noite, quando a lua estiver se debruçando no horizonte. Chame as forças para o seu lado, todas que você conhecer. Tens a Chave nas mãos pois nasceste com ela.
E aí sim, depois disso, os abutres serão enviados para longe e estarás livre.
Iniciada.
Não há morte.

PetrinaDhaza, 3/10/2004 13:51:10

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Correios


"O sorriso mais sincero é o sorriso desdentado"
(Mário Quintana)

Não tinha novidades para contar. A sensação era de carta roubada. Um correio lacrado talvez imaginado. Não entregado, porque nunca encontrado já que o lugar estava "encantado" - era isso que lhe diziam. Não tinha nada lá, teria imaginado? Viam somente ondas que se agigantavam... Quem sabe um contrato de trabalho ao menos... para lhe dar guarida e confirmar sua existência. O estado de fantasma se confirmava? Algumas vezes vultos pisavam-lhe o quarto. Pisadas. Pisadas. Armadilhas se pronunciavam. Ou não...
(Iria conferir no dia seguinte o que estava bebendo).
Esse efeito deveria estar em sua bebida, mas jurava que existia: sentia-se, suava, era constituída de uma carne que não largava os ossos.
Não conseguia sequer inscrever-se em concurso público. Teriam orientalizado o link?
A pista estava perdida. O resgate não acontecia. Sobrevoavam. Ela (a pista) era olhada de cima e só se viam as águas. Mas era alucinação. Jurava que seu juízo estava inteiro e tinha certeza de que ao menos um contrato existiria. E não era um espírito vagante inconformado por ter sido enterrado lentamente na tumba. Não, era sujeito existente. Mas nada do mensageiro. Nada de novidades mesmo. Na segunda-feira tudo se reiniciava e continuava: digo, a esperança de que lhe trariam notícias consistentes.
Não, o terapeuta não resolveria, (como lhe haviam sugerido) preferiria um empregador mesmo, desses de recursos humanos, e nada de lhe chamarem para uma vaga de telemarketing, é certo que uma vez passara por essa estação mas fora algo provisório, ficaria enervada se tal acontecesse e sorriria entredentes, mas disfarçaria sua desfaçatez com um sorriso cúmplice, não seria bom deixar uma má impressão...
Porque somente pretendia (ora!) trabalhar utilizando seu curriculum, colhendo o que plantara, não seria essa a lógica? Mas existiam respostas que ainda não havia compreendido nem recolhido em sua modesta investigação. Travara. Parada obrigatória para o pensamento crítico.
Sobre o lance dos chips, parece que (Dieu merci!) já tinham lhe desprezado, havia sido honrosamente excluída dessa fabulosa pesquisa. Inclusiva comentara que nem tinha autorizado pesquisa nenhuma com seu corpo. Quem sabe aquele empregador mudo agora lhe chamasse. Respondeu que "não, não fazia parte disso". E tinha que olhar nos olhos porque assim que lhe ensinaram uma vez, numa dinâmica. Nada de improvisar respostas. Estudaria as corretas. Lembraria de todos os gestos e atitudes. Faria tudo conforme. Tinha ouvido falar que a dita pesquisa era para produzir um tal de remédio para ressecamento vaginal, mas também lhe disseram em surdina que a última versão desse medicamento apenas provocara enjôo e vômito nos casais: porque nao fazia sentido juntar o cheiro de uma com o cheiro de outra.
(Que calafrio, não gosta nem de pensar nesse efeito enjoativo!).
Era membro da ABA: pesquisa com seres humanos deve ser autorizada. Mas cometeu um deslize: acabou comentando tudo com o entrevistador. Este continuara com um olhar impassível e não sabia nem se havia entrado no lugar errado e talvez aquela fosse a porta do psiquiatra, porque são sempre eles que nunca falam nada, parece que tudo ouvem e compreendem e então - concluiu - não sabia muito sobre esses novos recrutadores de recursos humanos. Daí que finalmente ele lhe perguntou se ela possuía ainda algo a acrescentar. Ela respondera-lhe que só queria saber quando começaria na vaga.
(Aprendera essa dica com um amigo).
Seu estado de irônica mudez talvez tenha sido a resposta.
Já em sua casa, na frente, parara um caminhão: mas ele não tinha nada a ver com isso.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

ENTRADAS E BANDEIRAS

Vencedora de um Oscar para melhor cantora: Preta! (Noir)...Ela canta mesmo! Mas já queriam usurpar...


Bloquearam-lhe todas as entradas para que baixasse suas bandeiras. Os motivos pareciam sérios mas eram ridículos. Pensavam que ela fosse autora de um livro sem mistério em que a capa guardava um nome tão plural que nem a autor(a) sabia do que se tratava ou por quem ele era escrito.
Tinham que resolver esse mistério.
Mas para chegar em sua casa era necessário se conhecer todas as passagens e senhas do caminho. Diante do bloqueio imposto o motorista afirmava convicto:
"eu vou na casa da Pretinha!"
E a passagem lhe era logo liberada. Ou: "isso aqui é tudo da Pretinha!" - e o resmungo terminava. O mau-humor se revelava se o motorista surtasse ou fosse gay - porque a Pretinha não gostava de gays. Então o policial disfarçava, ligava para alguém e negava a passagem. Resolveram então tentar outros caminhos e táticas, com afirmações do tipo:
"Eu não sou católico, mas eu comunguei!"
"Eu hoje sou fantasma!"
"Estamos indo na reuniao da Interpu do Brasil!"
"Libera aí as correspondências atrasadas da Pretinha!"
"A gente estamos atrasados, a Pretinha vai reclamar!"
Diante da estratégia bem sucedida de retórica, o rosto se azulava, o olhar se arregalava e o jeito era deixar passar. Não poderiam nem imaginar aqueles dentes brancos ronronando para eles. A Pretinha era xumbrega mais mandava bem. Nunca deixava vestígios.
Tanto que a casa visitada nem tinha nenhuma Pretinha:
"Vai ver que ela se encantou..."


Ps: O CD sumiu mas é claro que recuperei a imagem. Aí está a foto da cadela periculosa.
...
 
CHIENNE versus CADELA
 
Ela era uma galinha. Diante do tiro de espingarda se descobriu.
Ela era uma cadela. Diante do furto da máquina se descobriu.
No escuro, se viam as marcas.
Preta, fizera sucesso.
Mas tinha patas.
Fora chamada. Acreditava e subira aos céus por causa de uma premiação.
Ela cantava!
Não...ela não cantava...mas fora indo naquela ilusão e iria faturar!
Era procurada, a Preta.
Desvendado o assunto...
Preta era cadela de quatro patas e resolvera um dia, num filme, ensinar uma antiga canção aos respeitáveis cachorros.
Cantara.
Encantara entre os seus e ao público também.
Depois disso, na volta, ninguém entendeu o motivo do desprezo...Ficara desgastada.
A outra Preta aceitara o papel e fora ouvir aplausos.
Ficou presa e não convenceu.
Duas pernas negras mas não cantava. Afirmou não se lembrar do ocorrido.
Como era encargada como "cadela" fora lá a mando...tinha tudo para agradar...Era Preta Cadela.
Com isso ouvimos que a pessoa era Cadela...
E que a Cadela era pessoa...
Contra usurpação.
...
 
Observações dos cachorros:
-Não se pode nunca roubar a festa dos cachorros!
-O cachorro tem sempre o direito de se expressar, de latir e de ser feliz ao menos com um osso!
-Ele deve estar sempre bonito!
(Eles me pediram)
-O Luno sumiu...era um fabricante que sabia se remexer muito:

 
 
 
 

terça-feira, 11 de agosto de 2009

História da Lady


"Nós gatos já nascemos pobres,
porém, já nascemos livres."
( Enriquez/Bardotti, História de uma gata)

Em 26 de maio de 2008 nasceu LadyLaura. Era uma gata de sorte, reencarnara como gata porque pulava todos os muros em outra vida. Deve ter sido alguma maldição. Mas nunca reclamara de seu destino: tinha tudo que merecia: carinho, amizade, ração especial - sofria cuidados de um componente da família. Tinha até liberdade de ir e vir. Vivia mesmo solta. No entanto, já não saía tanto assim, desde o dia em que sumira por dois dias. Nesses dias, tinha ficado presa em algum cativeiro. Conseguira fugir e nem ouve alarde. Reaparecera sem qualquer arranhão. Como não saía mais achamos estranho seu sumiço.
A hipótese mais provável é a de que tenha sido furtada por motivos de vingança. A gata era formosa, porém não famosa. Era filha de um gato branco, de raça, com uma mestiça.
Dizem que ela foi vista com um sujeito alucinado, ambicioso, branco e alto, bastante conhecido no bairro. Estava dentro de seu super-carro e estavam indo para a Transcoqueiro. O sujeito transtornado gaguejava sem parar: "vooou es-tutttuuuuu-popopo-rararrrr-vuestupuraarrr"...
No posto de gasolina ele finalmente confessara: sua mulher estava encantada na gata. Confidenciara que eles iriam juntos para um lugar que só os dois conheciam. Ele faria tudo de acordo com o que o pajé lhe ensinara e uma linda mulher iria surgir da gata.
(Quem sabe até, aqui tudo é possível...)
Mas não parava de xingar a bichana: "desertora!"
Insistia na história de que a mesma arranhava os clientes que ela costumava pegar do lado do Basa. Dizia que sua conta estava lá e que não poderia mais se fantasiar de mulher para ir falar com o gerente. Era muito escandalosa a tal fêmea e seus encontros eram chocantes. Vista pelas costas então nem se fala. Era conhecida por gritar sem parar dizendo que aquilo era proibido. Diziam também que só usava salto agulha, saias longas e perigosas, não combinava nada com nada porque sua anti-moda era tu-do. Vermelho era a sua cor. Tinha fama de evangélica porque só saía religiosamente. Mas tinha os olhos vazios e as mãos eram sempre trêmulas. Gostava do Bar do Parque, principalmente porque lhe deixavam encher sua garrafinha de água ardente. Fazia parte da lista que o sujeito saía para vacinar de três em três meses.
E se ela não obedecesse, tratava logo de colocar-lhe uma formiga para investigar. Ora, isso era caso de agente secreto e a alta tecnologia - com certeza - iria desvendar esse mistério. Para se desvencilhar desse enredo, a gata fugira para longe, para lugar bem populoso. Assim ela iria se misturar. Mas ele não acreditava que a perderia de vista. Sua saída estratégica era apenas temporária, porque lhe mandara logo seguir: por toda parte tinha olho.
Quando retornara mandara até lhe colocar anel para que ela se recordasse de seus dias felizes.
Depois de tanta insistência, um dia eles se reconciliaram. Finalmente um happy-end!
Mas alegria de gato dura pouco e ninguém esperava que isso fosse acontecer: um dia ela engatinhou sozinha à noite e no outro dia surgiu boiando na Baía do Guajará.
Terça-feira, 11 de agosto de 2009. Minha mãe não se conforma. Tomara que seja outra.

Ps: a foto é da gata que sumiu. E eu tenho mania de registros.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

AXÉ


AXÉ
“Horácio, horácio,
há mais mistérios entre o céu e a terra
do que sonha sua filosofia...”
(Shakespeare)


Chegada ao estado do silêncio dos peixes...de vem em quando um ou outro olho fica mareado...e o corpo só diz água e a respiração se torna pelas brânquias: são os amigos do fundo que vem lhe buscar e ficam ao lado achando que ela ao fundo pertence e ao fundo deve voltar. Em maresia, então chama a Terra – axé – e tudo se transforma: parece que os orixás vêm dançando e modificam a energia intrusa, transpassam-lhe a alma e curam-lhe as feridas mal-cicatrizadas e, ainda, levam embora a substância venenosa recém-introjetada em seu corpo (sem permissão).
Dançando freneticamente e de modo guerreiro entoam o Yorubá e ainda obrigam o visitante inoportuno a ir embora, de volta para o seu lugar. Ela volta a respirar, o coração rebate, e então recupera o sopro vital. Entoa cânticos. E continua em Terra, pois afirma ao elemento da direita que Axé é vida, alegria, amor, luz....direito ao ser grande e inteiro.
Então o encantado pula de volta na água e vai sem Ela.
Mas ele é um curandeiro em sua tribo. Dar-lhe o bálsamo era a sua missão.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

No fundo do mar, um abismo


No fundo do mar, um abismo

"Un coup de des jamais n'abolira le hasard"


(Mallarmé)




O umbigo do mundo batia no fundo do rio. Ele me olhava e me chamava. Mergulhei, encontrei os egípcios, velhos conhecidos. Vislumbrei o caminho, o sol, as placas e só podia ser essa a dor de que me falaram: a dor de uma saudade. Um rosto querido que havia se perdido, ele precisava ser reencontrado. Busquei então em todos os portais de todo o labirinto. Encontrei amigos que se haviam perdido em aventuras na busca pelo Desconhecido. Eles foram reencaminhados aos seus antigos lugares. Mas daquele que eu tinha saudades não vi. Não o reencontrei. Ele não devia estar então no labirinto. Quem estava por lá havia envelhecido pelo menos alguns dez anos, de castigo, por ter invadido território sagrado sem preparação nem autorização. A curiosidade é insana: provoca perda de memória e da noção de nosso tempo existencial. Depois vem um vazio absoluto.


O umbigo batia como um coração e fui lá, atraída, depois pensei, lá no fundo: não sei, não deveria ter voltado para cá. Tubarões sempre me perseguem e quando não; torturam; atacam-me coração, mente, corpo, até o útero querem destruir e roubam-me também o sangue. Um nojo essa gente. Não são pessoas, são impostores de agentes desaparecidos: eles se dizem policiais. Acho mesmo que fugiram da penitenciária e que usam os nomes desses policiais que realizaram a missão, isto é, a tarefa louvável de prendê-los.


Então fiquei lá, meditando em azul. Mas vieram sim os tubarões e eles pareciam de plástico. Um deles, muito feroz, foi me atacar. Fingi que me jogaria na larva daquele vulcão surgido no fundo do mar: vermelho, de chamas incandescentes, ele soltava larvas. Então, numa espécie de ardil, ao invés deste tubarão provocar a minha queda, fora ele que se jogara para lá. Mas não vi o fim da história, não sei se ele fora salvo. Acho que ele fora salvo sim. (Há sempre discípulos predispostos ao sacrifício). Voltei. Os outros perseguidores desapareceram. Eram de plástico e murcharam. Chegaram a urrar quando o líder se jogara. Vários deles, como se uma parte de suas partes escuras lhes fosse arrancada das entranhas. Mas realmente não sei do final da história.


Mas era o próprio umbigo que lá se localizava - o portal ficava numa praia do Salgado - um canto majestoso me atraíra para aquele fosso. Mergulhei, havia o belo, um raio dourado, e o mysterium tremendum do numinoso que me revelaria porque eu havia retornado. Ele fazia parte de mim, e precisei vir buscar Saturno. Porque era essa a missão.


Havia a esperança de felicidade no final do arco-íris e um sol enorme, majestoso. Quente e confortável. Tinha saudades do seu lar. Viera desse sol e do infinito.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

GATUNO


"Choramos ao nascer
porque chegamos a este imenso
cenário de dementes." (Shakespeare)


Era noite de calor. Ou seja, da janela poderia ventar boas vibrações. Maresia. Poderia até sonhar com galanteios, flores e bombons. Contudo, ocorreu-lhe algo inesperado: seu chapéu preferido fora roubado. Teria sido provocação? Ou o gatuno inoportuno seria tão pobre que estaria extremamente necessitado de um modelito daquele? Achou até que era um homem alto e negro, não sabia ao certo. Lá pelas quatro da manhã, talvez. Sempre ficava dormindo pesado. É claro que estava revoltada. Um pequeno ato desses revela muitas coisas. Porque teria o invasor feito isso? Vamos levantar as seguintes hipóteses mais básicas:

a) Ele não tinha chapéu de feltro daquela cor, era um colecionador de raridades;

b) Aquele moço desconhecido e de uns dois metros de altura devia estar com inveja daquela cabeça inventiva;

c) Não gostava muito de seus escritos provocativos;

d) A confundira com uma evangélica, que estava sendo procurada por vários crimes;

e) Quisera dar algum aviso;

f) Ela não desistiria jamais de ceder seu curriculum, conforme já revelara anteriormente, por isso ele quis mostrar que foi lá: aplicou-lhe até creme de menta insuspeitável em região que não me convém revelar;

g) Só queria perturbar e provocar um ímpeto criativo na vítima;

h) Mandaram-lhe em outra casa aplicar o teste; ele invadiu a casa errada;

i) Trata-se de um golpe que ainda não chegou ao fim, o sumiço do chapéu é apenas um signo de algo muito pior;

j) Existe algo de inominado, de vazio nisso tudo: o chapéu lhe traria um sentido para sua existência materialista: era para contemplação;

k) Ele não conseguia escrever nem criar nada, colocou-se o chapéu para ver se uma luz se acendia em sua alma: porque aquele modelo parecia o do prof. Pardal;

l) O chapéu brilhava no escuro: não resistiu, era um cleptomaníaco;

m) Achou que o chapéu ficaria bem na cabeça loura da sua namorada baixinha: eles iam para a praia naquele dia;

No fim não se sabe, são apenas hipóteses que têm a função de apaziguar sua alma revoltada e desejosa de justiça. Aguarda a devolução do mesmo. Está indignada. E também precisa que lhe retirem o malefício que lhe fora colocado. A dor apenas lhe aumenta a sede de justiça. Ontem mesmo. Pela justiça ela lutará sempre: seu caminho de vida é seu porque foi ela que o construiu como um muro de tijolos.

A estrada do conhecimento nunca tem fim e seu fim é sempre o infinito.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Portais da Sabedoria

"Quod est inferius est sicut quod est superius,

et quod est superius est sicut quod est inferius,

ad perpetranda miracula rei unius."

(Tábua de Esmeralda)


Caminhava com dificuldades, mas viera contar:

Tratou-se de um convite. Diante da hecatombe era inevitável que fosse feita uma convocação extraordinária. Tragédias sucessivas aconteciam ao mesmo tempo. Suicídios inevitáveis eram enviados pela bestialidade humana. Desejo de poder, de posses e de prestígio. A intervenção divina era necessária. Fora chamada pelos Sete Senhores que governam a humanidade. Faria algo impossível em que muitos haviam naufragado. O Sumo Sacerdote lhe apoiaria também.

Era tudo o que mais gostava: um desafio. Unia para isso Conhecimento, Sabedoria, Força, Intuição e talentos inconscientes e o que é melhor: insuspeitos. Ninguém dava nada por ela. Também tinha uma coragem de leão. É claro que não iria sozinha: altas viagens necessitam de altos apoios...

Durante a Missão, viajou e deu muitas voltas. Seus inimigos não a alcançaram. Lutava e dançava. Quando não; entoava cânticos antigos que eram recuperados pela memória ancestral; mantras sagrados; era de muitas línguas e várias nações. Outrora fora espadachim da China, dançarina de Odissi, praticara Tai-Chi, admirara a pajelança amazônica, conjugava ainda o Candomblé da nação Ketu, os Salmos e provérbios, a moralidade judaica, a leveza budista, a Cabalah, o ritual católico da missa, o Rosacrucianismo - não importava: isso tudo vinha de uma única Fonte Original. Não discriminava nenhuma religião nem filosofia, mas não gostava de proselitismos nem de desrespeitos.

Enquanto isso, seus oponentes não tinham limites. Clones queriam aparentar-se a ela. A garota que, no sonho, conseguira voar tão alto quanto ela gostaria de limpar seu passado negro. Com isso se livraria da prisão já anunciada e com várias batidas de martelo daqui e de alhures. Fez de tudo para que a Guardiã ocupasse o seu lugar. Seus cúmplices também colaboravam para que o mal que ela plantava sobre a Terra se difundisse: abriam crateras na atmosfera e frestas absurdas que nos levariam ao Fim precocemente. Abusavam do roubo de um segredo.

Quem era contra a corrupção era torturado (daquele jeito que já mencionamos anteriormente). E esse mal ainda continuava. Seis meses já era muito para um julgamento desumano e absurdo, com práticas ditatoriais. E nenhuma conclusão: no tribunal faziam sempre as mesmas perguntas. Talvez estivessem enfeitiçados...

Quiseram caluniá-la, difamá-la, destruí-la, satanizaram sua imagem; mas ninguém ocupa o lugar de ninguém, ainda mais quando não há vocação para que, por exemplo, uma pessoa que vibra em outra frequência, decaía até à altura dos vermes.

(Há sempre diferentes níveis de evolução e a dança cósmica da evolução assim se realiza).

Ora, a mesma serpente que pica e envenena pode nos proporcionar a cura. Tudo tem suas faces. Não alteremos o equilíbrio ecológico. Não sabia se era válido exterminar serpentes...quem comeria os ratos?

Então tais vermes se deliciavam proporcionando torturas inimagináveis às pessoas honestas daquela aldeia. Estavam alterando o Equilíbrio, e tal era proibido. Seriam rechaçados. Nem sabe se triunfou na missão.


Ventos responderiam por ela. Gritou. Esperava novamente pelo Socorro. Fora atacada enquanto repousava tranquilamente sob uma árvore. Fazia tarde fresca e agradável. Colocaram-lhe uma espécie de anel que lhe causava desconforto. Deve ter sido reação à realização da Missão. Exus revoltados. Deviam se conformar: em território sagrado só entra quem for geômetra. Teriam que aceitar a Lei do Hermetismo, que estava sendo esquecida. Não podiam passar: isso era tudo. Estavam bloqueados porque não comungavam dos mesmos valores, nem consideravam nada como sagrado. Queria o desencanto, a desesperança e o desalento.
Eram as pedras pretas do tabuleiro...

Nada mais posso contar. Faz noite alta na aldeia. Je m'en vais.




quinta-feira, 23 de julho de 2009

Fraternidade


"Em primeiro lugar, o amor-próprio." (Simone de Beauvoir) 




Amizades iam e vinham. Éramos atraídos uns pelos outros pelo próprio espírito; a matéria era o que menos contava, embora inevitavelmente fôssemos parecidos. Tínhamos interesses semelhantes, e era sempre alguém defendendo essa ou aquela tese; este ou aquele teórico. Mesmo nossos inimigos eram inteligentes e afiavam nossas espadas quando nos envolvíamos em debates, então tornavam-se apenas oponentes momentâneos; possuir inimigos era coisa de espíritos retrógrados. Alianças temporárias eram possíveis: no Brasil tudo é relativo.
(Fui salva outro dia por um mendigo. Antes disso não sabia nada sobre negócio de estuporar...)
Uns não sabiam jogar com a arte da conversação. Outros não tinham a firmeza necessária e iam para o combate aflitos. Mas não era preciso ter medo: o abismo era ilusão. A onda gigantesca à entrada do santuário também era ilusão. Bastaria que a pessoa desse um passo a frente e começaria a rir-se pois o asfalto novamente surgiria. Vencer a ilusão era um desafio, mas que deixaria a todos contentes. Fora-lhes até sugerido que se abraçassem, num fraternal "Dia do abraço". Mas nem todos aceitavam: queriam a eterna juventude, isto é, o encantamento; tocarem-se seria um sacrilégio, pois isso lhes quebraria a face.
(Ora, para espíritos envelhecidos um só creme não é o bastante).
Que atravessassem a rua. Nada lhes aconteceria.
Há pessoas que não aceitam o jogo da oposição. Conseguem se tornar intragáveis com o passar do tempo...mesmo assim exercitávamos a tolerância em alguns casos. Sentarem-se na mesma mesa às vezes era complicado para alguns grupos que não concordavam com pontos fundamentais.



"Não convide esse"


"convide aquele"


"Essa aqui tem relações impróprias... "


"Se chamarem esse tal negócio não vai dar certo..."


Há pessoas que simplesmente não comungam dos mesmos valores e inevitavelmente são excluídas das rodas. O afastamento às vezes não tem motivo algum e segue os misteriosos caminhos da intuição.
(Ou da política):


"Essa garota cheira mal"
"Essa menina aí agora está na condição de fantasma!"


Somos todos preconceituosos no final. Mas quando amamos é de verdade.


Com Raimunda foi assim. Caminhava sempre corretamente fazendo movimentos marciais achando que tudo fazia sentido e que já sabia de tudo porque tinha lido tudo sobre Machado de Assis. Recusava debates e tinha respostas na ponta da língua. Mas aquele Alienista sempre lhe surtava. Porque uma coisa sempre se transformava em outra e aquilo lhe era misterioso para seu mundo organizado. Mas sempre achava explicações definitivas e se empenhava na construção de um manual. Trabalharia correto na educação. Era pedafofa, digo pedagoga.
Até que um dia, chegada quase ao cume da montanha, lhe disseram que ela não era ela mesma; era outra. Pensou até que aquilo fosse brincadeira, mas fora convidada a se retirar porque não subvertia. Fora-lhe sugerido que ocupasse outra cadeira porque aquela seria agora sua verdadeira identidade. E, assim, tal como uma hipnose, acreditara piamente que era outra. Sendo outra teria amizades outras. Outros desafios. Se empolgara até, palestrara, usara datashows, encenara perfis: ela era outra. Conversara com seus antigos conhecidos e lhes convencera de que tudo mudava: tinham que ler mais. Além disso, seu grupo tudo podia. Não havia limites para a ocupação. Conquistara novos amigos e novas relações. Tudo perfeito (nas aparências). Os dias se seguiram. A roda girara. Mas chegada numa grande curva, numa distração, num desatino, durante uma piada, o Alienista lhe caíra dentre as mãos e o verde tornou-se vermelho. Os loucos agora eram certos. Os certos eram loucos. Era hora de mudar e então partira obrigatoriamente. Fora-lhe ofertada uma fuga. Mas das amizades, só restaram estilhaços: sabiam que nem tudo que reluzia ouro lhes parecia.



Já com Ana foi diferente. Ela era a outra que a outra ocupara-lhe. É verdade que ficou sozinha, teve crises várias: de choro, de pesadelos, de saúde, mas já tinha sido considerada normal e pacata em algum dia. Esvaziara toda sua página porque lhe disseram que ela teria que recomeçar. Disseram-lhe que tinha errado. Seu estado de errância incomodava. Para ela era apenas aprendizado. Seu caminho de vida doce lhe parecia e se recusava a abandoná-lo. Mas recusara o sem sentido porque o próprio caminho e a expressão eram seu sentido. Disse-lhes que "não" e terminantemente "não": porque já tinha onze páginas escritas no pergaminho. As ofertas para a compra de seu curriculum continuavam, e eram cada vez mais sombrias: caíra de quinhentos reais para cem; chegou até a pensar que seria melhor vender logo as onze páginas antes que elas significassem centavos...
(Isso aí ela sonhou, mas quando acordou sua gata tinha reaparecido esquelética e faminta após dezesseis dias de sumiço!)
Então na história de vida de Ana bloquearam-lhe a comunicação porque a outra já lhe encenava com perfeição. E ela gostava de sandálias de dedo e a outra não. Não tinha exatamente em sua vida algo que seguisse religiosamente. Talvez somente sua própria vida acadêmica. Gostava das terapias todas: das alternativas. Mas nada de radicalismos, sua geração procurava relativizar. Adorava analisar porque isso eram traços de sua espécie, coisa de cientistas. Daí que, em sua trajetória, ser ela mesma tornou-se um problema para aqueles outros que foram revelados anteriormente. Mas insistia. Lutava. Preferia a guerra ao ostracismo. Pedira Socorro, daqueles mudos e ancestrais e agora somente aguardava. Sua história não estava terminada.
Tinha amigos em toda parte naquele labirinto, e esses se pressentiam e alguns nem precisavam de apresentação.
Quando fazemos signos secretos eles olham e vêem. Correm e acodem porque se comunicam pelos sentidos e se salvam a todo momento. De mãos dadas e sem correntes, caminham em um movimento internacional por tempos menos sórdidos.









quarta-feira, 22 de julho de 2009

DE CABELO EM PÉ!




"Não sou agricultor.
Desconheço a semente."
(Bezerra da Silva)

A política invasiva continuava: sentia-se grampeada, como se uma formiga lhe fosse colocada nas entranhas. Ela pulsava em suas entradas, depois subia; tinha-se a impressão de que passeava e depois caía. Tinha-se também a impressão de que ela ia num crescendo, crescENDO, CRESCENDO...CRESCENDO. Efeito de balão. O balão inchava. Até parecia que iria explodir. Quando chegava ao máximo desse inchaço, o "balão" começava a se esvaziar.
(Era ilusão. Estava louca. Rasgava dinheiro. Recusava propostas obscenas...).
Ficava com ódio, pois mal conseguia andar. O "troço" pulsava e incomodava. O efeito psicológico disso era devastador: destruía toda sua confiança na humanidade.
Queria expulsar "a coisa" e ia repetidamente ao banheiro. Tinha vontade de gritar. Ficava nervosa. Tornava a dizer que não autorizava nenhuma experiência científica em seu corpo.
(Se era por isso o terrorismo)
Naquela noite, o moreno que resolvera lhe conhecer aparecera com um súdito. Esse lhe tratava com toda parcimônia. Já vira esse homem uma vez, lhe seguindo na rua. Morava em Campinas. Estava deprimida naquela época e saía do médico. Era sujeito corpulento, forte, parecia ser alto, cabeludo; sem preconceitos, desculpe: mas tenho que dizer que ele parecia um árabe. Não o conhecia. Alguma autoridade ele deveria ter para ser tratado como se fosse o rei do Universo (ou o Rei das sementes...)
Confidenciou para o escravo que essa não era a sua mulher desaparecida. A preferida. A que ele contemplava naquele momento era gorda.
Depois dessa misteriosa visita, a "formiga" lhe havia sido aplicada. Que lástima! No outro dia, o mal humor era inevitável.
Não suportava mais essa situação. Queria mais respeito pelo seu corpo. Nunca tivera graves problemas de saúde e agora corria o risco até de ficar estéril por conta do capricho de seres desconhecidos e das inúmeras invasões em sua casa.
Nessa mesma noite, sentiu o perigo rondando. Nem queria dormir. Assistiu ao início do Programa do Jô. Resistiu ao chamado do sono o quanto pode. Mas era impossível ficar por muito tempo vigilante. Se essa visita se tornou mais um pesadelo evanescente mais tarde, nunca se sabe com certeza. Ficou como lembrança a péssima sensação de que havia sido grampeada.
Além disso, seus cabelos também sofreram vários atentados: que pessoa má seria essa que desejava destruir seus cabelos cacheados e naturais? Era simplesmente o terceiro conjunto de shampoo e condicionador que eram sabotados nesse período! A sensação era a de que neles eram colocados amoníaco e/ou pimenta, não se sabe. Só poderia dizer sobre o terrível ardor que restava após a aplicação. Esse último shampoo não tinha problema algum, o usara por uns três dias. Então sabia que não era um problema da fórmula, nem era alérgica a nenhum componente. Depois da misteriosa sabotagem não se arriscaria a experimentá-los. Não queria ter que correr novamente até o tanque mais próximo para aliviar a sensação de ardor que ficava no couro cabeludo.
Tinha que ir embora, sem dúvida. Mas talvez fosse isso que seus algozes quisessem: desocupar o lugar; colocar um clone lá. Não poderia partir: faltava verba. Preocupava-se com a família. E não achava justo abandonar a sua cidade para esse tipo de gente.
Acreditava que melhor seria ficar e lutar para que os incomodados se mudassem. Ora, o Estado precisa de pessoas qualificadas. E Belém do Pará sempre foi lugar muito aprazível e cidade cheia de memórias, que lhe faziam feliz quando revisitadas.
Por outro lado, não gostaria de se tornar mais uma espécie de herói, uma celebridade que se tornaria conhecida pelo mundo, via imprensa, somente após o sacrifício final.
Enfim, eram tragicidades cotidianas, que nunca tinham provas concretas.
Sofria de sonhos recorrentes...