quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

DAS MARGARIDAS. DESENCONTRO.


"Il y a toujours quelques murs qui nos empêche de passer"
(Saint-Exupéry)

"O poder não ri."
(Bakhtin)

No início até que prometia. Lia muito, discutia bastante, se colocava até - era o que os professores diziam. Mas não se sabe que acidente fora esse no caminho. Talvez um louro sedutor. Afinal, o discurso proferido em suas jovens orelhas era o de que se casasse imediatamente.
Aliás, quanto a isso, a mulher teria dois caminhos, segundo tal indivíduo, naquela sociedade às avessas: ou serviria a vários homens, prestando serviços à comunidade (digamos assim) ou seria a esposa de apenas um, mas era necessário que se ressaltasse: não teria o direito de escolha.
Seria simplesmente sequestrada um dia, sem ao menos conhecer o noivo e, vestida de uniforme de noiva, pelo simples fato de comparecer à cerimônia, meio que dormente, seria considerada casada. Nem o noivo veria sua face. Casaram-se? Foram apenas salvos da perseguição pelo papel. Não importava. Seguiriam pela vida. Quem sabe um dia até se encontrassem - ou nunca.
Margaridas... sonhavam a princípio com o Príncipe. Mas nas cobranças da vida o materialismo tornara-se prioritário. Tanto uma delas desejara que encontrara.
Sim, sua carruagem era encantadora, seus olhos eram maquiavelicamente azuis, se considerava irresistível, jovem, porte não tão alto, mas bem configurado. Era como ele se via e ela assim ouvia dizer. Quem não aceitasse sua corte seria considerada homossexual.


Passara por ela, chamando. Ela embarcara. Tinha encontrado o Príncipe. Então ele começara a lhe passar as lições. Toda a tabuada. Primeiro que a aparência era tudo (dizia com um certo ar professoral): seria melhor que alisasse os longos fios cacheados, clareando-os um pouco, quem sabe. Um beijo sedutor lhe era logo dado para que se convencesse. Passava os dedos dentre seus cabelos e reclamava.


Mas ela nunca notava esse tom. Estava já cega. Correu logo até o salão mais próximo e obedeceu. Era lhe dito aos ouvidos que não perdesse aquele bom partido. Passearam, apresentara-lhe vários tipos de carros, ela agora sabia tudo sobre veículos, motos, carros e motores.


Mas esse homem seduzia e para ela tal oportunidade lhe fascinava e ele para ela representava sempre o mistério: acima dela. Apaixonara-se. Sua palavra era tudo.
Dissera-lhe então - e sua persuasão lhe envolvia - que todos tinham um preço. Todos seriam capazes de se vender: era só descobrir o valor. Quis debater sobre tal idéia incômoda para sua mente ainda em desenvolvimento e comentou a todos sobre isso. Seu discurso gerou várias controvérsias. Contou-lhe sobre o debate, entusiasmada. De imediato, já vira outra face diante de si: deparara-se então já com outro namorado: transfigurado em ódio, vociferando que não mais subvertesse...


Ela olhou mas não viu. Simplesmente não entendeu. Era o seu deus que falava.
O moço de imediato começou a se distanciar cada vez mais e a faltar aos encontros marcados. Resolveu então que a colegial deveria conhecer mais pessoas, amigos, sair, se divertir então.
A festa foi bastante sugestiva e ela, levada de carro novo, com todo aparato típico de quem entra para esse tipo de negócio, fora apresentada à sociedade. Todos sorriam, cúmplices.
Então ele lhe disse, de supetão, já com outro ânimo, enroscado já a outra mulher, que tudo já havia mudado. Margarida expressou seu desgosto.


(Mas nem tanto)


Ele era então o amante de outra. Ah! DE OUTRA!!!


Chamou-a então, discretamente, em um canto. Novo discurso: achava que ela deveria se liberar mais, se conhecer mais, ele a sentia um tanto quanto recalcada. No seu ponto de vista, a moça deveria sair com outros rapazes e experimentar bastante (de tudo); e ele já havia se apaixonado por outra.


Na verdade - dissera-lhe - eles já eram namorados, possuíam já uma história juntos, tinham se conhecido em outro Estado, haviam de imediato se amado, sua conta bancária, então, "você sabe" prometia... Sua nova namorada morou um tempo em Paris, (comentara-lhe, enquanto fazia as apresentações) e já se considerava seu marido. Assinariam logo. Ela era com certeza sua alma-gêmea...e era essa sua proposta. Até se disporia a casar-se com seu nome verdadeiro...


A garota viu e sentiu imediatamente sua inutilidade, e achou que ele se utilizava, para se dirigir a ela, de um certo tom malvado, de vingança inexplicável.
"Por quê?!!!!" - gritava em seu íntimo.


Mas sorria, forçadamente: deve-se sorrir sempre - lembrara-se de uma das aulas.


Mas não queria ser confundida com aquela sua vizinha, que tinha tanto senso crítico que era apelidada de "ranzinza", dentre outros superlativos.


Humilhada. Olhos lacrimejantes. Com ódio. Sentara-se. O casal logo lhe dera as costas.


Ora, obedecera-lhe em tudo. Cumprira ordens. Efetuara todas as etapas do ritual. Aprendera certos truques necessários. Mas naquele momento encontrava-se estupefata. Disfarçou o que pode, manteve as aparências (isso ela bem aprendera com ele). Prendeu o choro. Respirou.
No outro dia não queria mais sorrir. Aquele desconhecido que conversara com ela na festa confidenciara-lhe que alguns homens gostam de mulheres poderosas. Outro lhe comentara que melhor seria se ela não sorrisse demais. O poder não ri. Então resolveu que queria ser poderosa.
Após muitas dias sem receber qualquer telefonema, resolvera reclamar da solidão. Ele então lhe enviara aquele novo amor. Mas não. Queria outro. Recebera um prontamente nas características encomendadas. Depois disso, proposta de trabalho. Pronto. Resolvera-lhe o problema.


Depois, nova reclamação. Então lhe lembrara de uma daquelas regras básicas já proferidas, e pedira-lhe uma posição: ou ela seria de todos ou de apenas um. De imediato, disse que preferiria se casar. Tal se tornara logo uma idéia fixa.


As novas tecnologias poderiam também lhe ajudar nesse seu intento. Caçava, insistentemente. Invadia mesmo contas alheias e, é claro, sabia tudo sobre seus pretendentes. A regra era também que logo obtivesse um cartão de crédito. Estava indo bem na profissão. Tinha vários. Mas muitas vezes sua mente romântica ainda de adolescente conflitava com os interesses do grupo.


Então queria casar. Aceitava ser surpreendida. Até chegava a sugerir como seria o ocorrido. Pedido aceito. Sequestro. Uniforme. Tudo feito. Problema resolvido. Mas o noivo queria consumação, não só o papel.


Terminou a noite amarrada e amordaçada.


Desencontro





“Já não tenho nada a temer.
Atingi o fundo.
Não posso cair mais baixo que o teu coração”.
(Marguerite Yourcenar, Fogos).

Era a suprema transgressão. Entregar-me assim sem nenhuma máscara, nenhuma regra, nenhuma prisão. Afogava-me em você, me encaixava no teu corpo, te sentia, me sentia. Conhecer era a grande heresia. No teu rosto eu me reconhecia e não tinha mais nenhum entrave, nenhum medo. Mas a  felicidade nunca nos foi realmente oferecida. Fugimos dos olhares inquisidores e  sem nenhum pudor,  arrancamos o proibido aos deuses, feito Prometeu, o acorrentado. Pagamos o preço. Feito hereges queimados numa fogueira. Insultamos os seres astrais com nossa completude. Teus olhos falavam o linguajar estranho das serpentes, traidores, obliqüos, sedutores. Tudo foi tão súbito e forte, como um vendaval que nos arrancasse do chão. Havia apenas a linguagem do desejo. Apenas a pele, a profundidade, a superfície, a retórica dos corpos e o bater forte de nossos corações. Foi aí que comi o tambor e você bebeu do címbalo. Tudo então se perdeu. A condenação foi certa e abrupta. Você sabia que eu não podia. Você era meu inimigo oficial. Tive de fugir, e quando voltei já era tarde. Eu, Helena. Você, Páris, de Argos.
O golpe fulminante da fatalidade. Foi naquela noite que os deuses completaram sua obra. Estava exultante, mas o tempo em si estava estranho, calado, como se algo se tramasse no infinito. E algo realmente chegava ao fim. Senti o punhal sendo cravado em meu peito e, de súbito, ela veio – a caveira incandescente da realidade. Ela me olhava, eterna, e doía nos ossos e na alma. Me matou. Me mostrou a decadência, a ruína, teu rosto de então. Não mais me reconheceste e daí escondi as lágrimas, as palavras não-ditas, silenciadas e incompreendidas.
O rapto, o encontro foi só um riacho efêmero de felicidade. Terrível a revelação da Morte: você estava lá: pequeno, mesquinho, acabrunhado, sem aura, sem brilho – mortal. Vi o  navio partindo. Sem leme, entre brumas, apenas partindo. Eu sabia que a  energia do que roubamos era  sagrada e imemorial e que ela pertencia somente aos deuses, eles, que nos concediam apenas alguns segundos desse presente, e ainda assim, se fôssemos dignos e tivéssemos o Direito. Eles nos castigaram, reles mortais, com o esquecimento da Promessa.  Não mais nos reconhecemos, eis tudo. Ao teu lado, aquela que foi ao teu encontro estava feliz, ela não era grave, não fazia perguntas, era apenas uma estátua com um sorriso eterno nos lábios, não fazia parte, apenas figurava na tua composição, na tua companhia, com ela não havia dor, não havia sanções. Perdemos. Ou não? Nos desencontramos. Não havia mais o rio, o doce rio onde eu mergulhava.. Não havia mais encanto. E a eternidade e o sol misturado ao mar. O real era muito triste então. A caveira queimava e me mostrava o que eu não queria ver. Mas ela se impunha e me encarava serena. Morri. Renasci. E no dia seguinte, lá estava eu, ressurgindo das cinzas e levando a vida com o vento. Estava chegando o momento de partir novamente...
Petrina Dhaza 24/10/00 17:54:16 e 20:16:00.