sexta-feira, 31 de julho de 2009

GATUNO


"Choramos ao nascer
porque chegamos a este imenso
cenário de dementes." (Shakespeare)


Era noite de calor. Ou seja, da janela poderia ventar boas vibrações. Maresia. Poderia até sonhar com galanteios, flores e bombons. Contudo, ocorreu-lhe algo inesperado: seu chapéu preferido fora roubado. Teria sido provocação? Ou o gatuno inoportuno seria tão pobre que estaria extremamente necessitado de um modelito daquele? Achou até que era um homem alto e negro, não sabia ao certo. Lá pelas quatro da manhã, talvez. Sempre ficava dormindo pesado. É claro que estava revoltada. Um pequeno ato desses revela muitas coisas. Porque teria o invasor feito isso? Vamos levantar as seguintes hipóteses mais básicas:

a) Ele não tinha chapéu de feltro daquela cor, era um colecionador de raridades;

b) Aquele moço desconhecido e de uns dois metros de altura devia estar com inveja daquela cabeça inventiva;

c) Não gostava muito de seus escritos provocativos;

d) A confundira com uma evangélica, que estava sendo procurada por vários crimes;

e) Quisera dar algum aviso;

f) Ela não desistiria jamais de ceder seu curriculum, conforme já revelara anteriormente, por isso ele quis mostrar que foi lá: aplicou-lhe até creme de menta insuspeitável em região que não me convém revelar;

g) Só queria perturbar e provocar um ímpeto criativo na vítima;

h) Mandaram-lhe em outra casa aplicar o teste; ele invadiu a casa errada;

i) Trata-se de um golpe que ainda não chegou ao fim, o sumiço do chapéu é apenas um signo de algo muito pior;

j) Existe algo de inominado, de vazio nisso tudo: o chapéu lhe traria um sentido para sua existência materialista: era para contemplação;

k) Ele não conseguia escrever nem criar nada, colocou-se o chapéu para ver se uma luz se acendia em sua alma: porque aquele modelo parecia o do prof. Pardal;

l) O chapéu brilhava no escuro: não resistiu, era um cleptomaníaco;

m) Achou que o chapéu ficaria bem na cabeça loura da sua namorada baixinha: eles iam para a praia naquele dia;

No fim não se sabe, são apenas hipóteses que têm a função de apaziguar sua alma revoltada e desejosa de justiça. Aguarda a devolução do mesmo. Está indignada. E também precisa que lhe retirem o malefício que lhe fora colocado. A dor apenas lhe aumenta a sede de justiça. Ontem mesmo. Pela justiça ela lutará sempre: seu caminho de vida é seu porque foi ela que o construiu como um muro de tijolos.

A estrada do conhecimento nunca tem fim e seu fim é sempre o infinito.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Portais da Sabedoria

"Quod est inferius est sicut quod est superius,

et quod est superius est sicut quod est inferius,

ad perpetranda miracula rei unius."

(Tábua de Esmeralda)


Caminhava com dificuldades, mas viera contar:

Tratou-se de um convite. Diante da hecatombe era inevitável que fosse feita uma convocação extraordinária. Tragédias sucessivas aconteciam ao mesmo tempo. Suicídios inevitáveis eram enviados pela bestialidade humana. Desejo de poder, de posses e de prestígio. A intervenção divina era necessária. Fora chamada pelos Sete Senhores que governam a humanidade. Faria algo impossível em que muitos haviam naufragado. O Sumo Sacerdote lhe apoiaria também.

Era tudo o que mais gostava: um desafio. Unia para isso Conhecimento, Sabedoria, Força, Intuição e talentos inconscientes e o que é melhor: insuspeitos. Ninguém dava nada por ela. Também tinha uma coragem de leão. É claro que não iria sozinha: altas viagens necessitam de altos apoios...

Durante a Missão, viajou e deu muitas voltas. Seus inimigos não a alcançaram. Lutava e dançava. Quando não; entoava cânticos antigos que eram recuperados pela memória ancestral; mantras sagrados; era de muitas línguas e várias nações. Outrora fora espadachim da China, dançarina de Odissi, praticara Tai-Chi, admirara a pajelança amazônica, conjugava ainda o Candomblé da nação Ketu, os Salmos e provérbios, a moralidade judaica, a leveza budista, a Cabalah, o ritual católico da missa, o Rosacrucianismo - não importava: isso tudo vinha de uma única Fonte Original. Não discriminava nenhuma religião nem filosofia, mas não gostava de proselitismos nem de desrespeitos.

Enquanto isso, seus oponentes não tinham limites. Clones queriam aparentar-se a ela. A garota que, no sonho, conseguira voar tão alto quanto ela gostaria de limpar seu passado negro. Com isso se livraria da prisão já anunciada e com várias batidas de martelo daqui e de alhures. Fez de tudo para que a Guardiã ocupasse o seu lugar. Seus cúmplices também colaboravam para que o mal que ela plantava sobre a Terra se difundisse: abriam crateras na atmosfera e frestas absurdas que nos levariam ao Fim precocemente. Abusavam do roubo de um segredo.

Quem era contra a corrupção era torturado (daquele jeito que já mencionamos anteriormente). E esse mal ainda continuava. Seis meses já era muito para um julgamento desumano e absurdo, com práticas ditatoriais. E nenhuma conclusão: no tribunal faziam sempre as mesmas perguntas. Talvez estivessem enfeitiçados...

Quiseram caluniá-la, difamá-la, destruí-la, satanizaram sua imagem; mas ninguém ocupa o lugar de ninguém, ainda mais quando não há vocação para que, por exemplo, uma pessoa que vibra em outra frequência, decaía até à altura dos vermes.

(Há sempre diferentes níveis de evolução e a dança cósmica da evolução assim se realiza).

Ora, a mesma serpente que pica e envenena pode nos proporcionar a cura. Tudo tem suas faces. Não alteremos o equilíbrio ecológico. Não sabia se era válido exterminar serpentes...quem comeria os ratos?

Então tais vermes se deliciavam proporcionando torturas inimagináveis às pessoas honestas daquela aldeia. Estavam alterando o Equilíbrio, e tal era proibido. Seriam rechaçados. Nem sabe se triunfou na missão.


Ventos responderiam por ela. Gritou. Esperava novamente pelo Socorro. Fora atacada enquanto repousava tranquilamente sob uma árvore. Fazia tarde fresca e agradável. Colocaram-lhe uma espécie de anel que lhe causava desconforto. Deve ter sido reação à realização da Missão. Exus revoltados. Deviam se conformar: em território sagrado só entra quem for geômetra. Teriam que aceitar a Lei do Hermetismo, que estava sendo esquecida. Não podiam passar: isso era tudo. Estavam bloqueados porque não comungavam dos mesmos valores, nem consideravam nada como sagrado. Queria o desencanto, a desesperança e o desalento.
Eram as pedras pretas do tabuleiro...

Nada mais posso contar. Faz noite alta na aldeia. Je m'en vais.




quinta-feira, 23 de julho de 2009

Fraternidade


"Em primeiro lugar, o amor-próprio." (Simone de Beauvoir) 




Amizades iam e vinham. Éramos atraídos uns pelos outros pelo próprio espírito; a matéria era o que menos contava, embora inevitavelmente fôssemos parecidos. Tínhamos interesses semelhantes, e era sempre alguém defendendo essa ou aquela tese; este ou aquele teórico. Mesmo nossos inimigos eram inteligentes e afiavam nossas espadas quando nos envolvíamos em debates, então tornavam-se apenas oponentes momentâneos; possuir inimigos era coisa de espíritos retrógrados. Alianças temporárias eram possíveis: no Brasil tudo é relativo.
(Fui salva outro dia por um mendigo. Antes disso não sabia nada sobre negócio de estuporar...)
Uns não sabiam jogar com a arte da conversação. Outros não tinham a firmeza necessária e iam para o combate aflitos. Mas não era preciso ter medo: o abismo era ilusão. A onda gigantesca à entrada do santuário também era ilusão. Bastaria que a pessoa desse um passo a frente e começaria a rir-se pois o asfalto novamente surgiria. Vencer a ilusão era um desafio, mas que deixaria a todos contentes. Fora-lhes até sugerido que se abraçassem, num fraternal "Dia do abraço". Mas nem todos aceitavam: queriam a eterna juventude, isto é, o encantamento; tocarem-se seria um sacrilégio, pois isso lhes quebraria a face.
(Ora, para espíritos envelhecidos um só creme não é o bastante).
Que atravessassem a rua. Nada lhes aconteceria.
Há pessoas que não aceitam o jogo da oposição. Conseguem se tornar intragáveis com o passar do tempo...mesmo assim exercitávamos a tolerância em alguns casos. Sentarem-se na mesma mesa às vezes era complicado para alguns grupos que não concordavam com pontos fundamentais.



"Não convide esse"


"convide aquele"


"Essa aqui tem relações impróprias... "


"Se chamarem esse tal negócio não vai dar certo..."


Há pessoas que simplesmente não comungam dos mesmos valores e inevitavelmente são excluídas das rodas. O afastamento às vezes não tem motivo algum e segue os misteriosos caminhos da intuição.
(Ou da política):


"Essa garota cheira mal"
"Essa menina aí agora está na condição de fantasma!"


Somos todos preconceituosos no final. Mas quando amamos é de verdade.


Com Raimunda foi assim. Caminhava sempre corretamente fazendo movimentos marciais achando que tudo fazia sentido e que já sabia de tudo porque tinha lido tudo sobre Machado de Assis. Recusava debates e tinha respostas na ponta da língua. Mas aquele Alienista sempre lhe surtava. Porque uma coisa sempre se transformava em outra e aquilo lhe era misterioso para seu mundo organizado. Mas sempre achava explicações definitivas e se empenhava na construção de um manual. Trabalharia correto na educação. Era pedafofa, digo pedagoga.
Até que um dia, chegada quase ao cume da montanha, lhe disseram que ela não era ela mesma; era outra. Pensou até que aquilo fosse brincadeira, mas fora convidada a se retirar porque não subvertia. Fora-lhe sugerido que ocupasse outra cadeira porque aquela seria agora sua verdadeira identidade. E, assim, tal como uma hipnose, acreditara piamente que era outra. Sendo outra teria amizades outras. Outros desafios. Se empolgara até, palestrara, usara datashows, encenara perfis: ela era outra. Conversara com seus antigos conhecidos e lhes convencera de que tudo mudava: tinham que ler mais. Além disso, seu grupo tudo podia. Não havia limites para a ocupação. Conquistara novos amigos e novas relações. Tudo perfeito (nas aparências). Os dias se seguiram. A roda girara. Mas chegada numa grande curva, numa distração, num desatino, durante uma piada, o Alienista lhe caíra dentre as mãos e o verde tornou-se vermelho. Os loucos agora eram certos. Os certos eram loucos. Era hora de mudar e então partira obrigatoriamente. Fora-lhe ofertada uma fuga. Mas das amizades, só restaram estilhaços: sabiam que nem tudo que reluzia ouro lhes parecia.



Já com Ana foi diferente. Ela era a outra que a outra ocupara-lhe. É verdade que ficou sozinha, teve crises várias: de choro, de pesadelos, de saúde, mas já tinha sido considerada normal e pacata em algum dia. Esvaziara toda sua página porque lhe disseram que ela teria que recomeçar. Disseram-lhe que tinha errado. Seu estado de errância incomodava. Para ela era apenas aprendizado. Seu caminho de vida doce lhe parecia e se recusava a abandoná-lo. Mas recusara o sem sentido porque o próprio caminho e a expressão eram seu sentido. Disse-lhes que "não" e terminantemente "não": porque já tinha onze páginas escritas no pergaminho. As ofertas para a compra de seu curriculum continuavam, e eram cada vez mais sombrias: caíra de quinhentos reais para cem; chegou até a pensar que seria melhor vender logo as onze páginas antes que elas significassem centavos...
(Isso aí ela sonhou, mas quando acordou sua gata tinha reaparecido esquelética e faminta após dezesseis dias de sumiço!)
Então na história de vida de Ana bloquearam-lhe a comunicação porque a outra já lhe encenava com perfeição. E ela gostava de sandálias de dedo e a outra não. Não tinha exatamente em sua vida algo que seguisse religiosamente. Talvez somente sua própria vida acadêmica. Gostava das terapias todas: das alternativas. Mas nada de radicalismos, sua geração procurava relativizar. Adorava analisar porque isso eram traços de sua espécie, coisa de cientistas. Daí que, em sua trajetória, ser ela mesma tornou-se um problema para aqueles outros que foram revelados anteriormente. Mas insistia. Lutava. Preferia a guerra ao ostracismo. Pedira Socorro, daqueles mudos e ancestrais e agora somente aguardava. Sua história não estava terminada.
Tinha amigos em toda parte naquele labirinto, e esses se pressentiam e alguns nem precisavam de apresentação.
Quando fazemos signos secretos eles olham e vêem. Correm e acodem porque se comunicam pelos sentidos e se salvam a todo momento. De mãos dadas e sem correntes, caminham em um movimento internacional por tempos menos sórdidos.









quarta-feira, 22 de julho de 2009

DE CABELO EM PÉ!




"Não sou agricultor.
Desconheço a semente."
(Bezerra da Silva)

A política invasiva continuava: sentia-se grampeada, como se uma formiga lhe fosse colocada nas entranhas. Ela pulsava em suas entradas, depois subia; tinha-se a impressão de que passeava e depois caía. Tinha-se também a impressão de que ela ia num crescendo, crescENDO, CRESCENDO...CRESCENDO. Efeito de balão. O balão inchava. Até parecia que iria explodir. Quando chegava ao máximo desse inchaço, o "balão" começava a se esvaziar.
(Era ilusão. Estava louca. Rasgava dinheiro. Recusava propostas obscenas...).
Ficava com ódio, pois mal conseguia andar. O "troço" pulsava e incomodava. O efeito psicológico disso era devastador: destruía toda sua confiança na humanidade.
Queria expulsar "a coisa" e ia repetidamente ao banheiro. Tinha vontade de gritar. Ficava nervosa. Tornava a dizer que não autorizava nenhuma experiência científica em seu corpo.
(Se era por isso o terrorismo)
Naquela noite, o moreno que resolvera lhe conhecer aparecera com um súdito. Esse lhe tratava com toda parcimônia. Já vira esse homem uma vez, lhe seguindo na rua. Morava em Campinas. Estava deprimida naquela época e saía do médico. Era sujeito corpulento, forte, parecia ser alto, cabeludo; sem preconceitos, desculpe: mas tenho que dizer que ele parecia um árabe. Não o conhecia. Alguma autoridade ele deveria ter para ser tratado como se fosse o rei do Universo (ou o Rei das sementes...)
Confidenciou para o escravo que essa não era a sua mulher desaparecida. A preferida. A que ele contemplava naquele momento era gorda.
Depois dessa misteriosa visita, a "formiga" lhe havia sido aplicada. Que lástima! No outro dia, o mal humor era inevitável.
Não suportava mais essa situação. Queria mais respeito pelo seu corpo. Nunca tivera graves problemas de saúde e agora corria o risco até de ficar estéril por conta do capricho de seres desconhecidos e das inúmeras invasões em sua casa.
Nessa mesma noite, sentiu o perigo rondando. Nem queria dormir. Assistiu ao início do Programa do Jô. Resistiu ao chamado do sono o quanto pode. Mas era impossível ficar por muito tempo vigilante. Se essa visita se tornou mais um pesadelo evanescente mais tarde, nunca se sabe com certeza. Ficou como lembrança a péssima sensação de que havia sido grampeada.
Além disso, seus cabelos também sofreram vários atentados: que pessoa má seria essa que desejava destruir seus cabelos cacheados e naturais? Era simplesmente o terceiro conjunto de shampoo e condicionador que eram sabotados nesse período! A sensação era a de que neles eram colocados amoníaco e/ou pimenta, não se sabe. Só poderia dizer sobre o terrível ardor que restava após a aplicação. Esse último shampoo não tinha problema algum, o usara por uns três dias. Então sabia que não era um problema da fórmula, nem era alérgica a nenhum componente. Depois da misteriosa sabotagem não se arriscaria a experimentá-los. Não queria ter que correr novamente até o tanque mais próximo para aliviar a sensação de ardor que ficava no couro cabeludo.
Tinha que ir embora, sem dúvida. Mas talvez fosse isso que seus algozes quisessem: desocupar o lugar; colocar um clone lá. Não poderia partir: faltava verba. Preocupava-se com a família. E não achava justo abandonar a sua cidade para esse tipo de gente.
Acreditava que melhor seria ficar e lutar para que os incomodados se mudassem. Ora, o Estado precisa de pessoas qualificadas. E Belém do Pará sempre foi lugar muito aprazível e cidade cheia de memórias, que lhe faziam feliz quando revisitadas.
Por outro lado, não gostaria de se tornar mais uma espécie de herói, uma celebridade que se tornaria conhecida pelo mundo, via imprensa, somente após o sacrifício final.
Enfim, eram tragicidades cotidianas, que nunca tinham provas concretas.
Sofria de sonhos recorrentes...

segunda-feira, 20 de julho de 2009

ÔNUS


"A realidade é um local muito bom de visitar.
Mas não é bom morar lá"
(Marshall Sahlins)



No meio da noite, dois mentecaptos trocam farpas entre si. Um deles, ironiza, afirma: "ela não é santa? Eu vou rezar..." Faz gesto. Tem sotaque de cidade do interior, talvez mineiro. O outro avisa que ela é filha de santo, "não se pode mexer com ela"
(Seria mesmo por isso que não se pode incomodá-la?)
Um outro, homem da Lei, infartado, não pode socorrer, está no hospital, tantas foram as pressões contrárias. Há de salvar-se, tem mérito e uma rede de amigos confiáveis. Talvez até já tenha evaporado de lá...
A conversa continua, animada, acham que ela já está para ser "desovada":
- Nessa aí, a gente não coloca mais nada!
- Mandaram colocar até tranca nas portas das casas, a gente não pode nem mais estuporar as mulheres!
- Ah, ela não queria dar!
- Não pode mais fazer NADA!
- Ela é muito bonita, eu queria pegar!
- Era pra colocar até ela confessar, mas ela não confessa!
- Vamo embora, ela tá pra acordar!
- A outra também pode acordar, ver e denunciar!
O homem a contempla desejoso. Ela olha e vê o gordo e o magro, mal-afeiçoados. Parece um pesadelo. Eles desaparecem. Vira para o lado e dorme novamente. No entanto, sente algo estranho no corpo, que pulsa.
Não sabe quando nem como termina a perseguição. Mas protesta: é uma negra da nação Ketu. Toma o café, come o pão, bebe o leite. Simplicidade. Sua garganta logo fecha e arde.
Nada demais: apenas rotina do terror. É. Cada um escolhe o seu Senhor.
Mistério...

sábado, 18 de julho de 2009

Zona de Perigo


"Páre. Isso é humano"
(
Pela mão de Alice,
Boaventura de Sousa Santos)


Naquele dia, seu espírito não encontrara sossego. Tinha a sensação de que a qualquer momento voaria, mas não podia: não era chegado o momento. Então foi ao lugar certo, nas últimas horas que lhe cabiam de vida. Um portal: cuidou-se e fora cuidada. Fora também raptada e salva no mesmo dia, inexplicavelmente. Nem sabe como isso se deu.
Um coração então, na boca da noite, bateu entre seus dedos. Livrou-se das maldições. Quando já havia partido, leve, a Senhora fora lhe buscar - nas estrelas - com ordens superiores. Afirmou que era hora de voltar, impreterivelmente, naquele minuto. Sussurrou em seus ouvidos a palavra mágica. Ela voltou a respirar e seu coração voltou a bater. Aterrisou em seu próprio corpo incólume que estava lá, estendido no chão sagrado.
Os dias se passaram e as noites. Informações confidenciais em relatórios internacionais nada relataram sobre o ocorrido; seu corpo recusava qualquer invasor e tudo era queimado. Era vista apenas como uma espécie de conjunto constituído de cabeça, corpo e membros, em que a espionagem não tinha limites, como satélites: curiosidade obscena, irritante.
A invasão de privacidade já não conhecia fronteiras. Tomara todos os limites sagrados do próprio corpo. Como se o sagrado estivesse contido na matéria e na matéria em si se dissolvesse. O homem é sim capaz de ir além do que é; escavando suas próprias possibilidades a partir do próprio umbigo. No entanto, toda porta tem seu porteiro e somos mais do que uma montanha de carne e de ossos.
Não devia haver nada lá fora. Mas há o infinito. E outra coisa além. E outra coisa ainda.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

ATOS SECRETOS



"Tudo isto que o terráqueo abismo encerraForma a complicação desse barulhoTravado entre o dragão do humano orgulhoE as forças inorgânicas da terra!"("As cismas do destino" de Augusto dos Anjos)

Declaro para o astral mudo que são postos para fora, e não devem passar pelo portal secreto , todo aquele que pratica a iniquidade: a mulher sem alma e sem curriculum, que, enlouquecida, surta, quebrando tudo. O homem cego, que lhe acredita como vítima. A traficante que seduz corrompendo espíritos fracos. O olho mau que olha feio, numa espécie de loucura. A idéia de enriquecimento ilícito. Os crimes de internet. A corrupção. A tortura. A inveja. O roubo de autoria. A formação de quadrilha. A bela feia a espalhar doença pela terra. O martírio do ventre. As violências simbólicas. O terrorismo - somente passam pelo portal aqueles iniciados de alta moralidade.
Difícil é encontrá-los.
Vivemos sob tempos difíceis e invertidos. Imersos e com poeira nos olhos. A justiça terrena nunca consegue um olhar pleno. Desejamos o impossível, pois o mundo será sempre cinza, como um tabuleiro de xadrez: preto e branco = cinza.
Eu tive um sonho: sem mistérios. O casal caminhava pesado. Ele, pelo próprio peso da gordura e pela sua corrupção. Ela, pelas escolhas deformadas que fez.
(Mas não discriminemos a obesidade. Há pessoas que tem muito amor por detrás do peso).
Porém, nesse sonho, o casal arrastava correntes, juntos. Apenas iam. Ela atrás dele. Caminhava tristemente. Avisada tinha sido. Queriam buscar outros, mas esses já haviam tentado a regeneração e não estavam mais no mesmo lugar vazio. O casal tinha ouvido o chamado e haviam atendido a ligação errada. Acreditavam realizar a justiça na terra, exterminavam e estavam enganados. Pois desrespeitavam tradições e não tinham consciência. Ele havia procurado o pântano por gosto; ela tinha sido escravizada. Ele a tinha perdido e depois reencontrado. Depois que a reencontrara dera-lhe palmadas porque acreditava que ela gostasse disso.
Agora os Atos realizados secretamente estavam sendo executados.
O Olho Tudo Vê e ninguém engana o Cósmico com retórica.
E a Sacerdotiza apenas aguarda.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

INSÔNIA



"Deus é paciência."
(Guimarães Rosa)
Rostos cínicos acham graça de sua ousadia. Para eles, seria questão de horas que ela lhes revelasse uma pretensa máscara escondida.
Ledo engano. Não há nenhum esconderijo. Esconde-se sob a luz do Sol do meio-dia.
Esperarão em um ponto qualquer de uma cidade do interior, inutilmente, porque ela nunca marca encontros. A arapuca está armada. Não há saída: os insensatos devem fugir. São fracos e isso o vento leva. Bastava que nunca tivessem lhe imposto um bloqueio, (porque ela é do tipo que sempre reage a assaltos) e não teriam sofrido nenhum retorno. O futuro deles será em preto e branco com uma camisa listrada.
(É contra o suicídio, acha mais bonito o xadrez mesmo. Porque o xadrez sempre volta à moda)
Nem precisa revelar que a Lei existe. Isso é tão óbvio... E não aceita que "as leis existem para não serem cumpridas" - como ouvira, certa vez, de uma adolescente sem regras.
Aguardemos ouvindo o noticiário.
Sobre ontem: não dormiu. A irritação aumentou-lhe por conta do calor. Não teve socorro imediato. Por isso parou, sentou-se e pensou que logo alguém recuperaria toda sua memória e cumpriria com seus juramentos. Nunca perdia a esperança. E não havia nada de novo. Apenas esperava.
Percebia que havia rostos muito ambíguos, que refletiam a amargura de uma vida mal vivida. Outros desfaleciam no asfalto quente todas suas certezas: teriam que rever antigas posições. Efeito-borboleta dos desmascaramentos ocorridos. Confusão de identidades.
Era olhada às vezes de relance. A loucura envolvia sempre essas pessoas e andava à espreita planejando armadilhas. Era preciso estar sempre vigilante. Mas nem sempre conseguia.
Hoje mesmo faz muito verão na Amazônia. A temperatura lhe dá uma certa sensação de desabrigo. Há um certo mal-estar. Mas luta, contudo - com todas suas convicções sem preço. Atenta, percebe não mais precisar revelar a mesma ocorrência: aquela mesma espécie de incômoda formiga colocada. Teria sido uma cigarra?
Talvez amanhã isso tudo se transforme. E, com sorte, sorria.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Política da mediocridade



"Há duas coisas a desejar da vida:

primeiro, conseguir o que você quer

e depois usufruir o que você tem.

Só os muito espertos conseguem a segunda. "



(L.P.Smith)



Acordou santa. Porque outra coisa não podia: tinham-lhe grampeado a vagina, para ver se talvez, cometeria alguma espécie de desatino. Quem sabe ela ligasse para alguém, vá saber - rastreariam. Antigamente se grampeavam telefones, hoje em dia, em tempos tecnológicos, se grampeiam as partes íntimas e se coloca GPS nas nádegas. Controle sufocante. Algum corno com trauma, talvez. Ou agentes secretos mal-informados. Ou isso ou aquilo, não sabia quem perseguia, afinal.


Diziam-se policiais, que investidos de plenos poderes, achavam-se no direito de entrar na casa de pobres cidadãos. As vezes iam armados para que os proprietários - acuados - abrissem a porta sem qualquer resmungo. Queriam falar com a "suspeita". Esta não sabia quem era quem. Suspeita de quê? E não é policial aquele que cuida da segurança do cidadão? E bandido é aquele que rouba e mata? Confusões conceituais.




Era sempre procurada por esses desconhecidos que, como argumento para a invasão, utilizavam-se de várias estratégias. Uma delas: de posse de certidões falsas de casamento, exigiam direitos de marido diante de um pai estupefato: "eu vim para fazer sexo..." Teria sua filha casado em segredo quando estivera longe? Confundiam sua mente. Sua filha era solteira e nunca tinha se casado, nem mesmo morado junto! "Também não era mulher da vida!" Era mais do que difícil. Mas ficava balançado de dúvidas. Sempre fora desconfiado.




Na verdade, o que faziam era testar (e destruir) a confiança entre os grupos e plantar a discórdia entre parentes e amigos. Inclusive muitos amigos haviam se separado por conta dessa "politicagem". Era preciso que se amassem de verdade e se conhecessem profundamente para vencerem tais artimanhas. E que, também, carecessem de ambições materiais. As pessoas se afastavam também com medo dessa guerra.




E que bizarro: eram vários maridos!




De madrugada, ao seu pé da cama, sempre lhe aparecia algum que lhe contava histórias absurdas, enquanto ela queria gritar e não conseguia, pois sempre dormia profundamente. Mas sabe que sonhou que reagia. Com socos e pontapés. Passou a xingar também.




Uma vez um deles fora lhe visitar. Não sabe como ele entrara. Dissera-lhe que ela já tinha dois filhos com ele, os dois moravam numa cidade do interior do Pará. O tal do homem com sotaque do interior não compreendia porque havia sido abandonado com duas crianças para criar. Enquanto que ela (não sei contar sua descrição, mas diziam que tinha pernas finas) fugira para São Paulo para dar um golpe em uma quase homônima.




Naqueles dias passados, nem pensara duas vezes: entre ficar com um marido que lhe batia e lutar para assumir o lugar de uma solitária doutoranda, optara pelo segundo lugar. (Mesmo que sequer tivesse qualificação para isso). Achou que seria fácil. Não podia imaginar que uma mulher que conquista o que quer - obviamente - tem apoio e forças para isso.




Dizem que a fugitiva golpista morrera atropelada. Nem sei dizer, é tudo hipótese. Ouvi falar.




Outro pretenso "marido" disse-lhe que ela era um "peixe" e que havia fugido da "cidade dos encantados". Tinha largado cinco filhos nas profundezas para criar. E tinha que voltar urgentemente para lá! Sempre deixava medicações para que ela tomasse e "desencantasse" (sic!). Ele mesmo dizia que era um "boto". Sempre lhe perguntava porque ela havia lhe traído. E ele não era, para ela, nada mais nada menos, do que mais um louco desconhecido. Achou que esse aí havia lido seu mestrado, para contar tantos absurdos. (Sua dissertação abordava esse tema).




Ao menos esse visitante tinha mais imaginação do que os outros. Devia ser algum tipo de estrangeiro que havia se encantado pelas lendas amazônicas, enfeitiçado, talvez, por tanto lendário. Espécie de torturador romântico.




Esse homem branco era aquele que costumava colocar-lhe chips que pulsavam em seu ventre, enquanto ela dormia, dando-lhe a impressão de que algo explodiria dentro dela, a qualquer momento, como uma bomba-relógio. Para esse problema, descobriu, usando a lógica, que bom era beber Coca-Cola. Esse refrigerante tinha elemento corrosivo que talvez corroesse essa tecnologia e gelado lhe refrescava nesse calor. E nem era muito amante desse refrigerante. Preferia guaraná Garoto. Mas, diante das circunstâncias...agora até compreendeu os escândalos que a outra fazia. Ouvira falar de seus surtos e dos quebras que promovia em bares noturnos. Devia estar reagindo a alguma situação semelhante...




(Agora o negócio era comigo. Que falta de sorte!)




Esse suposto marido e outros invadiam seu quarto, falavam-lhe no escuro (evidentemente não percebiam o engano, se não viam; tinham medo de acender a luz do quarto, por causa da câmera) e aplicavam-lhe testes absurdos em nome da polícia internacional - a Interpol. Baratas voadoras e formigas na cama, como também shampoos estragados e bananas que causavam sensação de sufocamento, entre outros efeitos alucinatórios - diziam - faziam parte do "teste". E eles às vezes eram aplicados por parentes e amigos, que queriam ver a desempregada sair daquele sufoco: "Era tão chique pertencer à Interpol!" - se confidenciavam entre si, deslumbrados. Na verdade - convenhamos - enganados em sua ingenuidade. A vítima não tinha formação policial, por isso nada disso lhe fazia sentido. Era apenas uma intelectual. Que horas que havia pedido tal teste? Quando havia autorizado pesquisas científicas em seu corpo?




Afirmavam também que iriam "estuporar" o seu útero. Outros diziam que não, pois "essa aí nem útero tem mais!". Mas ela até agora se perguntava o que era aquilo... não compreendia tais acontecimentos.




Outro discurso era que tais "pesquisas" era uma "experiência científica". As desculpas para a tortura, afinal, não conheciam limites. As ameaças de extermínio eram frequentes. Até já havia se acostumado e quanto mais ameaçavam mais ela criava. Pois conselho de todo filósofo é que diante da crise, sempre se crie. Ora, tudo pode ser uma ilusão, não? (piscadela cúmplice).




Criar para ela não era problema, (alguns que não tem imaginação nem formação ocupam-se apenas de roubar a produção de outros), suya imaginação jorra feito água - o líquido precioso que tem faltado em seu bairro.




Outra fala era que tudo isso acabaria. Segundo esses déspotas, se renunciasse ao seu Curriculum Vitae da plataforma Lattes, do CNPQ. Recusaria sempre tal proposta indecente. Visitavam-lhe com frequência para lhe perguntar se já havia "retrocedido". Ela respondia, convicta: "não. Jamais. Não vendo, não dou e não empresto meu curriculum!" Como reação ouvia: "então não retiro o chip".




Além disso, outra palavra muito utilizada era o particípio "desertado". O moço-Boto chegou a lhe dizer que ela havia "desertado" de sua vida de dama fácil, que atendia "vários clientes" nessa cidade: "tinha até uma lista para ela conhecer" (sic!).




O moço desconhecido se confundira de rosto, sem dúvida.




Ora, era pessoa muito honrada: tinha orgulho de sua história, adorava contá-la e recontá-la. Era muito narcisista e gostava de auto-incensar-se, em adoração de si. Por alguns, era tida por "malvada", apenas porque rejeitava propostas de corrupção e "se colocava". Coisas de professora, esse rigor - acreditava. Não via nenhum mal nisso.




O garoto dessa noite pretendia colocar-lhe uma mortalha, pois ela não havia "confessado". Mas, desistiu: parece que descobriu que ela não era a procurada. Até tinha religião considerada muito temida por mentes preconceituosas e completamente oposta à da mulher que conhecera biblicamente. Tão chocado ficou que teve que pular a janela quando o pai da moça acordou. E ele não era um Boto, sem dúvida.



Eu não vi, nem sei de nada, estive sonhando mas tenho a certeza. Foi tudo assim.








PS.: Isso tudo é ficção. Trata-se de uma idéia para um romance ou novela policial. Conto com contribuições dos leitores sempre tão vorazes e presentes...


(Que mentira esse PS!)



Quadros

Quadros


"(A tortura) é o meio mais seguro de absolver os criminosos robustos e condenar os fracos inocentes". (Cesare Beccaria)


Acontecimentos triviais, rotineiros: na segunda, um chip. Na terça, um chip; na quarta, um chip; na quinta, feira; na sexta, um chip - em lugares obtusos, nem imagine. No sábado, feira. No domingo, aflição. Revolta muda.
Nesse meio-tempo, estuda.
Para um amigo seu, é diferente:
Na segunda, um chopp; na terça, um chopp; na quarta, uma loura (visão do chopp); na quinta, também faz feira; na sexta, um chopp; no sábado, se alimenta
(de comida autêntica, da patroa)
Nesse meio-tempo ele goza.
Para ela, o corpo humano não é máquina. Protesta. Tem direito.
Para ele, não tem solução. Melhor beber,
 "porque se fosse sólido ele comeria*".

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Belém do Pará Aprazível


“O tempo tem tempo de tempo ser,
o tempo tem tempo de tempo dar,
ao tempo da noite que vai, correr,
o tempo do dia que vai chegar”

(Rui Barata)
Adoro minha cidade. Estou aqui pela primeira vez achando que permanecerei após o meu retorno em dez anos. Porque sempre tenho as malas prontas. A chuva que cai repentina é fascinante. Nem permite que o sol parta. Chuva com sol. Os passantes nem se importam e caminham na chuva. Nem dá tempo de abrir o guarda-chuva. É cidade-família. Ninguém quer se separar. Quando casam, avizinham-se para não se perderem as memórias. Tem energia peculiar. Linha do Equador. Tem gente que não acredita mas eu acredito. Nos renovamos. São os mistérios da Amazônia. De energia baixo-astral (me disse um amigo) só tem o "Igarapé das Almas". Também com esse nome... Eu nem quero saber aonde isso fica. Estou por aqui. (Sei lá, entende, mil coisas). As praias nesse mês prometem. Os múltiplos olhares daqui nem se comparam com os de lá. Cada lugar com seu conjugar. Aqui se conjugam tradições orais e conflitos atuais, é divertido ouvir as histórias paraenses. Espero também o Círio de Nazaré. Minha cidade tem açaizeiros, bacurizeiros, cupuaçu, pé disso e daquilo. Bacuri também é nome de gente. E é heresia misturar o açaí com granola.
Hoje não quero drama. O dia está muito bom.
De trágico só o meu bolso.





quarta-feira, 8 de julho de 2009

AGONIA:O.B.B.O

AGONIA
"A história é uma galeria de quadros
em que há poucos originais e muitas cópias."
(Charles A. de Tocqueville)

Continuemos. O sentimento do trágico ainda não havia lhe descolado da pele. Nem de nenhuma de suas profundas superfícies. Fora apenas um breve momento de felicidade. Ontem mesmo essa náusea, esse desconforto parecia ter partido de seu cotidiano. Ledo engano. Pensara até que estivesse livre. Por isso, sorria beatificamente. Olhava com bons olhos para todas as situações inusitadas. Abençoava tudo. Pisava leve. Festejava. Mas seus dias de paz logo se tornaram apenas projeto, sonho mesmo - na verdade, eram dias de luta. Felicidade abortada.
Naquela mesma noite, como um pesadelo, um estranho parecera invadir seu recinto. Era fétido, parecia nervoso. As glândulas, nesse caso, sempre produzem esse suor que nos dá calafrios. Péssimas emanações.
Assim, sem poder reagir (pois costumava dormir pesado) sentira que uma espécie de castigo lhe seria imposto. Espécie de O.B. mal colocado que lhe provocava sério desconforto e massacrava seu bom humor de todos os dias. Sonho recorrente. E como uma torneira que nunca pára de pingar, continuadamente, sem solução, tudo recomeçava. E as idas ao toalete no outro dia eram frequentes e inexplicáveis. Sem provas, ela se calava. Os cabelos também ardiam, teria sido algum excesso de amoníaco na fórmula gasta do shampoo? Mistério. Não sabia se o crime tinha cúmplices ou não. Também não sabia o motivo de tanto terrorismo. E quando relatava o pesadelo diziam-lhe, com toda certeza, que delirava. Mesmo assim, talvez ingenuamente, esperava alguma espécie de salvação. Ora, não podia mais tolerar ser tratada como um robô. Sem chips, era o que queria. Dispensava os testes: nunca os havia pedido. E lhe diziam também que via muita novela...aliás lhe diziam muitas coisas que não tinham sentido. Tudo bem, em sonho o psicodelismo é permitido.
(Cf. tela de Salvador Dali).
Maria era uma pessoa pacata. Uma pessoa. Tudo que desejava era usufruir do que tinha conquistado em sua trajetória acadêmica. Também amava sua costumeira liberdade de ir e vir. Era bem comum: não lhe achavam feia, mas seu capital acumulado sempre fora a cultura. Nunca a beleza, nem o ornamento. Levantava-se ao amanhecer e adormecia ao anoitecer. Nesse meio tempo, estudava. Nada demais. Seguia as leis como qualquer cidadã. Como muitos em seu país queria passar em um concurso público. Por isso organizava-se, lia, refletia, alimentava-se. Em outros tempos praticaria também algum esporte. Não agora. Tinha rotinas de esperanças típicas de quem espera por mudanças. Nunca se casara, nunca tivera filhos, tinha uma saúde de ferro e nenhuma cirurgia. Acreditava, como qualquer mulher, que um dia encontraria o seu Shrek, porque em negócio de príncipe não confiava. Para ela, o amor era questão de sorte, era uma romântica, porém, não ingênua. Olhava com desconfiança para os arranjos amorosos, mas tinha de admitir que em alguns casos, tratavam-se de encontros acertados. Ao menos, lhe parecia.
Em alguns pesadelos desses noturnos pediam-lhe que parasse de escrever. Mas era assim que respirava nesses dias de cofre vazio. (Pedido negado: mil desculpas).
E sendo assim, Maria pensava em transformar o O.B em B.O: em homenagem ao BOBO que lhe investira de tal coisa, lhe visitando - imaginariamente.
Et moi, narradora, não disse nada. Tudo isso é ficção. Eu nem escrevi isso. Não me comprometo jamais: "ah, foi uma amiga de infância..." E eu sou uma Ghost Writer! (sic!).
Você que acabou de me ler saia agora de sua sala e diga que não sabe e que nunca viu:
"qualquer coisa, fale com os meus advogados".

terça-feira, 7 de julho de 2009

Libertação

"Libertação". P.I.G.S., 2008.
Libertação
"Se assim foi, assim pôde ser; se assim fosse, assim poderia ser;
porém como não é, não é. Isso é lógica". Lewis Carroll.


Há momentos de sono da alma, em que, na verdade, o sonho e o tele transporte lhe salva, inclusive da dor. Quase não suportou. Nem sabe o que ocorreu. Poderia até ter cedido na opressão. Mas o que é seu, é seu e não deve se desculpar por isso. Nem muito menos ceder ao mal.


A verdade ressurge e deve ser o que permanece e ninguém acredita nela (sorte a sua). Porque:


A máscara mais segura para um esconderijo será sempre o que é mais evidente: a verdade. A nudez de uma revelação não convence, pois anda de sandálias. Do passado, ninguém se lembra, ninguém viu. Nem querem saber, vale o que se vê nas aparências e somente o capital. Vale o argumento do vil metal. Ouro de tolo.


A mentira saiu correndo, fugiu. Ilusões são voláteis. O que é forte permanece, como uma árvore centenária, incrustada na terra. Guarda, segura, sua posição.


É a Guardiã do portal. Fica lá, muda, secreta e inteira. São barrados todos os mal-intencionados. Os dias passam e ela permanece. Vem a noite e vem o dia, vem a aurora e o crepúsculo, e ela permanece. Até chove e faz sol, de repente. E ela não se desgasta porque está em si. Portadora de um pergaminho que lhe fora concedido em segredo. Em dias imemoriais. Mas ele só tem valor para quem é daquele mundo, outros não dão a mínima para tantos sussurros e palavras ditas ao ouvido. É Força para sempre. Embora vigilante e de olhos bem abertos, espera que agora tenha direito aos seus merecidos dias de tranquilidade e que ninguém mais ouse desafiá-la para duelos mortais.


Seria fatal.


segunda-feira, 6 de julho de 2009

Bastidores da criação.

"Mur de briques. Bibliothèque!"(Max Jacob)

Lent et douloureux. Escutei Satie. Lembrei-me:
Naqueles dias as horas corriam estéreis e havia a sensação de que o ar estava seco e o pulmão já não absorvia o ar. O que existia de concreto era a folha branca e seu vazio sombrio. Era preciso que o negro preenchesse a página. E lutava-se com isso.
Conservava-se o segredo, no entanto. Respeitava-se os limites.
Ora o texto escorria entre os seus dedos feito mergulhos n'água, ora escapavam e nada se fazia. Cumprir um tempo determinado era sempre a regra. Porque do tempo ninguém escapava. Éramos vistos como seres privilegiados e as cobranças eram inevitáveis. Éramos invejados sim, porque isso era de se prever numa sociedade de desiguais. Tratava-se de encarar o desafio, de cabeça erguida e sem perder la ternura jamais. Era também um desafio não perder a dignidade, diante dos testadores. Pois vez por outra, havia sempre alguém oferecendo portas abertas para a ruína com um sorriso acolhedor. Recusava esse abismo e essa depressão.
Havia uma reação: o corpo se contorcia numa recusa para a destruição. Pois sempre dissera "não" à corrupção.
Fora estudante pobre, sem recursos, almoçava sempre em restaurantes universitários, sempre fora de escola pública, e ficava sempre feliz com coisas poucas, como, por exemplo, quando alcançava a compreensão de um conceito. Atingia alta abstração. Sorria. O lugar comum também lhe agradava: coisas sem preço. Um conhecimento de valor incalculável.
Quando tudo travava sentia-se numa prisão: da cor, dos sentidos. Sua expressão era como respirar: obrigatória. A liberação só acontecia quando experienciava o movimento. Então no Tai-Chi se locomovia, libertavam-se as tintas pretas. Coroava-se de energias. Cobria-se de idéias. Nadava borboleta. Descansava os sentidos. Voltava para casa e debruçava-se no lençol da criação.
No nada do silêncio, naquele sobrado em que escrevia, percebia-se como uma consciência desperta.
E nunca estava só.



sexta-feira, 3 de julho de 2009

Surto

Surto
"Criar é desatar angústias".
Gaston Bachelard.
E foi como se ventasse, e gelasse os pés num dia de desabrigo, de desatino. Gelava o quarto. Entravam navalhas de frio. Diante da opressão: o grito. Para dentro, mudo, sem eco. Ecoou nas entranhas. Fez-se sangue.
Queriam que babasse, que seu cérebro explodisse em mil pedaços e, assim, o garoto pobre, porém inteligente, perderia o próprio rumo, ficaria somente só, interditado pela família, visto como louco por todos, para servir somente para um negócio: que lhe subtraíssem o sangue. E nem sabia porque. Acordava e via somente sombras no quarto. "Uma mente brilhante", diziam. Mas se era delírio a visita constante de um estranho, porque então as mãos formigavam e as veias ficavam doloridas? Como se o sangue dali fosse sempre extraído, jorrasse e tivesse sempre um cheiro de mistério.
Sonhava muito. Voava, combatia o mal, era Don Quixote lutando contra os ventos e expulsando as tempestades. Vários seus iguais voavam mais baixo que ele, a sensação de ir e vir era constante. Daqui a pouco também o céu ficaria congestionado. Mas delirava. Nem era homem... era um andrógino, sem sexo. Fechara os olhos: vinha outra onda. Enfrentaria essa e outra e outra.
O coração disparou assustado. Ao lado, também outra muda criatura. Mesmo em sua insensatez, lembrava-se dela: tinha olhos pretos, fortes e firmes. Figura franzina, o vestido sempre lhe escorria pelo corpo e ficava-lhe bem. Mas não era alta. Diziam que ela cantava em noites de insônia.
Ele, pelo menos, nunca viu.
Do cabelo, nada mais possuía, tinham-lhe arrancado tudo. Fora encontrada rastejante nas ruas e levada também para aquele lugar.
Ela gritou fundo tudo que podia. Berrou. Louca, sólida. Inconsequente. Arrancou-se-lhe toda a dor contida no centro de seu tórax. Desmaiou. Não sabia aonde estava.
O delírio veio-lhe como um presente: corria pelas ruas escuras, nua, feliz, e chovia. E era uma chuva de libertação. Dessas que somente caem em sua cidade. Curou-lhe todas as feridas. Sentiu-se amparada.
Mas era um engano. Tratava-se de um mal pago enfermeiro que pretendia prender-lhe à cama. Odiava-o. Ele lhe detinha a liberdade. Diante de uma negativa honesta, ele lhe aplicara um sedativo fatal. E então, angústia: o quarto girava. Não mais saía. Tudo trancado.
Estrela muda, escondida no fundo do barro.
Que há de criar-se, qualquer dia, não importa
. Sua cantoria calou-se. Era somente sonho. O moço ao lado (aquele dos olhos na testa ) vociferava: "mil impropérios, mil impropérios. Mais dois mil impropérios!!!".
(Moça fina de bom trato não pode reproduzir palavrão - dissera-lhe sua mãe. Por isso não conto isso aqui) . E o enfermeiro evaporou-se dentro do espelho. Era um mistério.
Então ela criou coragem. Fechou os olhos. Até estava crescendo... crescia, crescia, crescia. Pelo alto da cabeça, por debaixo dos pés, pelos lados e pelos altos. Já ia até se tornando um gigante até que. Algo se quebrara, devia ter sido um copo, algo assim.
Tudo real. Não havia nada lá fora. Sem mais delongas, resolveu que escreveria então. Outro dia criaria uma história, quem sabe. De acordo com os almanaques. Tudo como deve ser.
A escritura é sua e é secreta, dita em sussurros. Para não ser escutada e nem mesmo lida. Vomitou. Que lástima! O tempo...
E ninguém compreendeu.