"Há duas coisas a desejar da vida:
primeiro, conseguir o que você quer
e depois usufruir o que você tem.
Só os muito espertos conseguem a segunda. "
(L.P.Smith)
Acordou santa. Porque outra coisa não podia: tinham-lhe grampeado a vagina, para ver se talvez, cometeria alguma espécie de desatino. Quem sabe ela ligasse para alguém, vá saber - rastreariam. Antigamente se grampeavam telefones, hoje em dia, em tempos tecnológicos, se grampeiam as partes íntimas e se coloca GPS nas nádegas. Controle sufocante. Algum corno com trauma, talvez. Ou agentes secretos mal-informados. Ou isso ou aquilo, não sabia quem perseguia, afinal.
Diziam-se policiais, que investidos de plenos poderes, achavam-se no direito de entrar na casa de pobres cidadãos. As vezes iam armados para que os proprietários - acuados - abrissem a porta sem qualquer resmungo. Queriam falar com a "suspeita". Esta não sabia quem era quem. Suspeita de quê? E não é policial aquele que cuida da segurança do cidadão? E bandido é aquele que rouba e mata? Confusões conceituais.
Era sempre procurada por esses desconhecidos que, como argumento para a invasão, utilizavam-se de várias estratégias. Uma delas: de posse de certidões falsas de casamento, exigiam direitos de marido diante de um pai estupefato: "eu vim para fazer sexo..." Teria sua filha casado em segredo quando estivera longe? Confundiam sua mente. Sua filha era solteira e nunca tinha se casado, nem mesmo morado junto! "Também não era mulher da vida!" Era mais do que difícil. Mas ficava balançado de dúvidas. Sempre fora desconfiado.
Na verdade, o que faziam era testar (e destruir) a confiança entre os grupos e plantar a discórdia entre parentes e amigos. Inclusive muitos amigos haviam se separado por conta dessa "politicagem". Era preciso que se amassem de verdade e se conhecessem profundamente para vencerem tais artimanhas. E que, também, carecessem de ambições materiais. As pessoas se afastavam também com medo dessa guerra.
E que bizarro: eram vários maridos!
De madrugada, ao seu pé da cama, sempre lhe aparecia algum que lhe contava histórias absurdas, enquanto ela queria gritar e não conseguia, pois sempre dormia profundamente. Mas sabe que sonhou que reagia. Com socos e pontapés. Passou a xingar também.
Uma vez um deles fora lhe visitar. Não sabe como ele entrara. Dissera-lhe que ela já tinha dois filhos com ele, os dois moravam numa cidade do interior do Pará. O tal do homem com sotaque do interior não compreendia porque havia sido abandonado com duas crianças para criar. Enquanto que ela (não sei contar sua descrição, mas diziam que tinha pernas finas) fugira para São Paulo para dar um golpe em uma quase homônima.
Naqueles dias passados, nem pensara duas vezes: entre ficar com um marido que lhe batia e lutar para assumir o lugar de uma solitária doutoranda, optara pelo segundo lugar. (Mesmo que sequer tivesse qualificação para isso). Achou que seria fácil. Não podia imaginar que uma mulher que conquista o que quer - obviamente - tem apoio e forças para isso.
Dizem que a fugitiva golpista morrera atropelada. Nem sei dizer, é tudo hipótese. Ouvi falar.
Outro pretenso "marido" disse-lhe que ela era um "peixe" e que havia fugido da "cidade dos encantados". Tinha largado cinco filhos nas profundezas para criar. E tinha que voltar urgentemente para lá! Sempre deixava medicações para que ela tomasse e "desencantasse" (sic!). Ele mesmo dizia que era um "boto". Sempre lhe perguntava porque ela havia lhe traído. E ele não era, para ela, nada mais nada menos, do que mais um louco desconhecido. Achou que esse aí havia lido seu mestrado, para contar tantos absurdos. (Sua dissertação abordava esse tema).
Ao menos esse visitante tinha mais imaginação do que os outros. Devia ser algum tipo de estrangeiro que havia se encantado pelas lendas amazônicas, enfeitiçado, talvez, por tanto lendário. Espécie de torturador romântico.
Esse homem branco era aquele que costumava colocar-lhe chips que pulsavam em seu ventre, enquanto ela dormia, dando-lhe a impressão de que algo explodiria dentro dela, a qualquer momento, como uma bomba-relógio. Para esse problema, descobriu, usando a lógica, que bom era beber Coca-Cola. Esse refrigerante tinha elemento corrosivo que talvez corroesse essa tecnologia e gelado lhe refrescava nesse calor. E nem era muito amante desse refrigerante. Preferia guaraná Garoto. Mas, diante das circunstâncias...agora até compreendeu os escândalos que a outra fazia. Ouvira falar de seus surtos e dos quebras que promovia em bares noturnos. Devia estar reagindo a alguma situação semelhante...
(Agora o negócio era comigo. Que falta de sorte!)
Esse suposto marido e outros invadiam seu quarto, falavam-lhe no escuro (evidentemente não percebiam o engano, se não viam; tinham medo de acender a luz do quarto, por causa da câmera) e aplicavam-lhe testes absurdos em nome da polícia internacional - a Interpol. Baratas voadoras e formigas na cama, como também shampoos estragados e bananas que causavam sensação de sufocamento, entre outros efeitos alucinatórios - diziam - faziam parte do "teste". E eles às vezes eram aplicados por parentes e amigos, que queriam ver a desempregada sair daquele sufoco: "Era tão chique pertencer à Interpol!" - se confidenciavam entre si, deslumbrados. Na verdade - convenhamos - enganados em sua ingenuidade. A vítima não tinha formação policial, por isso nada disso lhe fazia sentido. Era apenas uma intelectual. Que horas que havia pedido tal teste? Quando havia autorizado pesquisas científicas em seu corpo?
Afirmavam também que iriam "estuporar" o seu útero. Outros diziam que não, pois "essa aí nem útero tem mais!". Mas ela até agora se perguntava o que era aquilo... não compreendia tais acontecimentos.
Outro discurso era que tais "pesquisas" era uma "experiência científica". As desculpas para a tortura, afinal, não conheciam limites. As ameaças de extermínio eram frequentes. Até já havia se acostumado e quanto mais ameaçavam mais ela criava. Pois conselho de todo filósofo é que diante da crise, sempre se crie. Ora, tudo pode ser uma ilusão, não? (piscadela cúmplice).
Criar para ela não era problema, (alguns que não tem imaginação nem formação ocupam-se apenas de roubar a produção de outros), suya imaginação jorra feito água - o líquido precioso que tem faltado em seu bairro.
Outra fala era que tudo isso acabaria. Segundo esses déspotas, se renunciasse ao seu Curriculum Vitae da plataforma Lattes, do CNPQ. Recusaria sempre tal proposta indecente. Visitavam-lhe com frequência para lhe perguntar se já havia "retrocedido". Ela respondia, convicta: "não. Jamais. Não vendo, não dou e não empresto meu curriculum!" Como reação ouvia: "então não retiro o chip".
Além disso, outra palavra muito utilizada era o particípio "desertado". O moço-Boto chegou a lhe dizer que ela havia "desertado" de sua vida de dama fácil, que atendia "vários clientes" nessa cidade: "tinha até uma lista para ela conhecer" (sic!).
O moço desconhecido se confundira de rosto, sem dúvida.
Ora, era pessoa muito honrada: tinha orgulho de sua história, adorava contá-la e recontá-la. Era muito narcisista e gostava de auto-incensar-se, em adoração de si. Por alguns, era tida por "malvada", apenas porque rejeitava propostas de corrupção e "se colocava". Coisas de professora, esse rigor - acreditava. Não via nenhum mal nisso.
O garoto dessa noite pretendia colocar-lhe uma mortalha, pois ela não havia "confessado". Mas, desistiu: parece que descobriu que ela não era a procurada. Até tinha religião considerada muito temida por mentes preconceituosas e completamente oposta à da mulher que conhecera biblicamente. Tão chocado ficou que teve que pular a janela quando o pai da moça acordou. E ele não era um Boto, sem dúvida.
Eu não vi, nem sei de nada, estive sonhando mas tenho a certeza. Foi tudo assim.
PS.: Isso tudo é ficção. Trata-se de uma idéia para um romance ou novela policial. Conto com contribuições dos leitores sempre tão vorazes e presentes...
(Que mentira esse PS!)