quarta-feira, 23 de setembro de 2009

PÁ VIRADA



"SEMPRE QUE CHOVE
Sempre que chove
Tudo faz tanto tempo...
E qualquer poema que acaso eu escreva
Vem sempre datado de 1779!"
Mario Quintana



Pareceu que iria chover uma daquelas chuvas arrasadoras, cruéis e revoltosas e repletas de raios e trovoadas, daqueles raios emocionantes chuvas que lavam um coração e levantam-lhe a coragem. Mas que nada! Não acontecia nada... Ficara esperando na mesa tocando piano, impaciente. Nenhuma tempestade para animar. Nenhum banho para tomar. Nenhuma promessa cumprida. Nenhum contrato chegado. Sequer qualquer telegrama. Aflição. Tomaria algo? Era seguro? Melhor seria um self-service. Melhor nem comer nada... ora, os disponíveis para o mercado de trabalho não têm escolha. Venha o que vier.
"Vamos negociar..."
"Desde que seja dentro de certas condições..."
Alguns compreendiam o que queria dizer. Outros não. Mas vale um recuo do que uma tragédia que cause calafrios. Não venderia seus bens culturais de modo algum. Mas às vezes não acreditava nessa situação. Estava imaginando. Não havia nada lá fora. O céu de chuva até passara. As nuvens negras se dissiparam.
Levantara-se sem comer nada. Apenas água mineral.
(Era bom para a dieta).
O aleatório até que às vezes lhe salvava e então em seguida resolvera jogar.
Até pensara que havia ganho. Mas que nada! Era tudo ilusão! Não deu GATO!!! Perdera a aposta e o almoço. Mas haviam lhe dito que sim, tinha acertado. Zoneou. Mas que nada! COELHO!!! Por aqui as apostas são permitidas. Não jogara escondido. Aprendeu que o importante numa competição era participar. Mas não gostava disso. Era retórica. Gostava mesmo era de ganhar.
E então não suportara a frustração. Surtara. Gritar não adiantava. Quem sabe se caminhasse...caminhara muito pouco. Ainda não se sentia bem. O ódio lhe corroia as entranhas e gostaria muito de ter o poder mental de explodir certas pessoas inconvenientes e até com instituições, prédios e edifícios...mas era pura catarse. Era pessoa pacífica. Quem sabe um filme de ação lhe melhorasse o humor...sentia que lhe ludibriavam...não se conformava...tentavam lhe convencer de sua loucura. Ao menos parecia que as vozes em sua cabeça começavam a se calar...ao menos isso. No entanto sua paciência já não mais existia. Sentia-se esgotada. E se assumia apenas como desconfiada diante de situações estranhas.
Tinha sérios motivos para se identificar como tal: como desconfiada.
Então continuaria sua batalha.
Navegar era sempre preciso - já dizia o poeta que quase se afogara.
E a virada, Senhores, teria que ser olímpica.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

ECLIPSE

Foto: minha. Eclipse. P.I.G.S. (2009)


"Um eclipse escurece teu céu nessa caminhada"


(do Livro da Sorte)







Chuva com sol deveria ser prenúncio de algo. Signos de água talvez fossem favorecidos naquela queda. Mas nada disso. Tudo transparecia igual. Caminhava sob um céu azulado e o sol negava-se a se pôr.



"Subverta!" - dizia um gravador. Eram tantas as repetições que não sabia mais o que fazer. Enlouquecia. Ouvira dizer que esse efeito alucinógeno se tratava de um mero chip. Ficara perplexa: o foco era o cérebro. A voz lhe dissera que era difícil desativá-lo pois parecia que ele era de diamante, ela lhe contava histórias e no final negava-as todas. A conversação inútil era freqüente e incomodava.


Chegara a pensar que fosse esquizofrenia mesmo. Quem sabe um medicamento, uma internação resolvesse esse mistério. Ou quem sabe, encontrasse socorro na religião. Mas era tudo tão estranho: enviava ordens e também as recebia. Conversava mentalmente como se estivesse escutando um rádio numa longa e cansativa entrevista que parecia não ter fim. Evidentemente que questionava e analisava tais ordens: eram coerentes? Trariam consequências futuras?



"Subverta!" - dizia a voz insana.



Mas sua subversão era até clássica. Gostava dos desafios mas também crescia no silêncio. Nem sempre desejava a tal da subversão. Tudo muda e já sabemos quantos naufragaram nessa queda, obedecendo, seguindo pretensos mestres.



Com o tempo, tivera enjôos e calafrios. Surtava. Chegara a tomar um mingau inteiro por conta daquela voz que lhe sugerira tal coisa:


"Toma o mingau! É para desligar o chip!"


Temos todos momentos de fraqueza e quem sabe aquele eco se calasse. Tomou sofregamente.



Sim, até pensou que sentiria sono. Mas adora nadar e na sua alma às vezes encontra o rumo certo. Dormir era fuga mesmo.



Insuportável. Chegara no limite. A tal da voz diversas vezes lhe sugeria absurdos, colocando-lhe em situações de risco:



"Compareça em tal lugar, em tal hora, Fulano de Tal ou seus amigos estarão todos lá"



"Nós estamos chegando! (Mas não chegavam)



"Estamos agora na porta do santuário...digo...não! É do cemitério!"



Resistia. Julgava em seu íntimo que se tratava de uma artimanha. Mas lhes comunicara que a linguagem dos arcanos é sempre eterna e o portal não se abre para qualquer um. Diante do fato sabia que qualquer pisada em falso poderia lhe ser fatal. Mas temia pela sua securidade. Também às vezes duvidava de tudo isso e dizia para si mesma que tudo isso era paranóia ou mistificação.



Porém quando estamos cercados não há muito o que fazer. Fazemos escolhas de vida ou de morte. Um jogo de xadrez difícil. Tudo escuro. Perseguição. Será que a Hora era chegada?



Então invocamos a voz longínqua do papagaio interior... sua luz talvez nos sugerisse um caminho e nos acalmasse. Talvez ele mostrasse uma saída para a gruta. Fugimos da situação.



A aflição continuava e clamamos pelo oráculo. Olhamos para o sagrado. Mas o que foi ouvido não foi muito agradável. Cortes certas vezes são inevitáveis pois uma peça mal-colocada no veículo pode explodir o carro inteiro.



A história...sucessão de eventos nem sempre compreensíveis para a razão. Ela nos mostra o quanto um acaso qualquer, fortuito, pode definir uma vida. Às vezes uma pedra apenas desmorona com o edifício inteiro. Daí, certas escolhas são fatais.



Naquele dia, entre um bicho e outro, em um dia atípico e bizarro, enquanto caminhava entre vários desatinos, um rosto apenas se revelara no meio da multidão. Ele apontava para a liberdade.


quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Cozinheira preta



"I sacrifice my cock on the altar of silence"
(Jim Morrison)


"Se eu cozinho é meu?"

(Anônimo)

Cozinha e filosofia sempre caminharam juntas. Cortava-se um tomate: uma barreira. Cortava-se outro tomate: outra barreira. Durante a cebola chorava muito porque todos choram nessas horas. Punha-se sal mas começava a duvidar também do elemento. Além disso, temia a pimenta, mas sem ela nada de movimento. Eram muitos detalhes nessa arte e nada disso bastava. Tinha-se que se pensar nos convidados. A carne estava sendo escolhida. As batatas eram sem vício e se deliciava, mas se estranhamente ardessem na garganta parava para analisar.
Morreria pela boca?
Para um cozinheiro talvez o mais importante seja o processo de preparação e não o prato final, ou seja, a própria viagem. O cru e o cozido. A cara e a coroa. Dizem que apressado come cru, mas nunca se sabe... não seria melhor mesmo comer cru, porque os ditos primitivos sabiam das coisas? Então somos civilizados e esperamos o cozimento, mas não se sabe a hora em que tudo chegará ao ponto...mas e se a comida perder o sentido?
Vieram os convidados. Eles materializaram-se. Mas para eles muitas vezes a comida não era conhecida e nem sempre sabiam dos protocolos. Apenas a ordem era dada e sem explicação. Daí que a comida talvez não ficasse palatável ao final, porque era pura castração exterminar aquele momento de criação. Talvez terminasse sem sabor, sem gosto, sem alegria.
(Sua mãe, por exemplo, detestava o azedo; ela, por sua vez, amava o doce.)
De qualquer modo, encarava qualquer prato: coisas de antropóloga. Mas nem sempre conseguia fácil digestão.
Uma vez, por uma fome de banana, ficara três horas sem respirar. O efeito se repetira com um suco comprado na rua, e também com uma água de côco.
Era impressão dos sentidos, "coisas de sua cabeça" - diziam-lhe. Porém garantia que era verdade. Ficava sem ar. Sufocava.
Eram presentes (e ela adorava presentes).
Mas precisava ser assim? Assim é que se contratavam atualmente? Testes...testes...testes... a que hora pedira tais testes?
A galinha realmente se tornara picante a ponto de causar um ressecamento total, quase sem solução. Seria a pimenta? Aonde teria sido comprada? Outra vez seu prato preferido causara-lhe estranha convulsão. Ouvira dizer que alguns ingredientes já eram vendidos envenenados. Sendo assim, estressados aposentados, ingênuas donas-de-casa, desempregados, viúvas, órfãos, aflitos - todos se tornavam alvo.
E tais convidados gostavam apenas de morar na filosofia. Isso não era muito - acreditava. Quem sabe encontrassem um lugar aprazível...
Mas o cozimento era destinado ao silêncio.













quarta-feira, 9 de setembro de 2009

SACRIFÍCIO


“Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
“Que farei eu com esta espada?”
Ergueste-a, e fez-se.”
(Fernando Pessoa,
in Mensagem)


“I have Said to the Worm: Thou art my Mother & my sister.”

(William Blake).

De cabeça para baixo, os abutres comem-te o fígado como se não houvesse fim. Teu ouvido cola-se ao chão e a tudo que desprezaste: a mortalidade, os conflitos, o sofrimento. Agora o Destino te agarra e faz com que esfregues o nariz no chão, para que conheças a realidade da lenta ondulação dos vermes juntamente com a vida dos insetos. E nem podes gritar: roubaram-te a voz. Então simplesmente ficas e abordas este abismo. Encontrarás a inspiração nessas profundezas infernais. Sim, aceitas o sacrifício e o experimentas como uma iniciação. Mais uma morte.
Já dentro do templo, ultrapassaste o limiar, agora – lá dentro – querem ainda cortar-te a cabeça, e depois disso, arrancar-te o coração. Se conseguirem, ficarão extasiados e gargalharão por muitos séculos até que o portal entre os mundos se abra novamente e outro seja enviado.
Com as sombras lutando para te derrubarem, invocas todos os dias a Luz Maior e eles se afastam, furiosos. Você olha e vê que só a pedra negra afunda na água, não você, o sacrifício. Há dias que clamas por nossa ajuda e nós te atendemos e levamos embora toda energia enviada para que percas a rota. Você sabe: a medida que sobes, desfolha-te, perdes cada vez mais partes da vestimenta. Então já chegaste na encruzilhada e te despersonalizaste até onde fora possível. Passaste a andas nua. Pelas ruas, na multidão. Não sabia quem não conhecia o ver, mas desde então só caminhavas nua. De manhã, de noite, adquiriste a nudez como verdade. Mas irás além disso, dessa nudez, e agora te restam os cabelos e até o fim eles expressarão o retrato da tua alma, refletindo o sol ou rechaçando Saturno. Escuta isso, dependurada e presa como estás aí agora mesmo: sobre Saturno, é bom que se diga, foi ele quem te ordenou agora esta execução e é ele quem passeia pelos jardins e olha se fazes ou não a tarefa: ele quer te engolir como devorou a todos os seus filhos – só para que não perdesse o poder de sua mão. E você planta o milho, ele cresce, a terra é fértil, porque nas tuas mãos há fogo. E Saturno, aflito, sabe disso tudo e não aceita a velhice, não aceita que chegou o fim de seu reinado. Agora é Júpiter quem irá reinar - assim sempre foi a história - e será preciso que ocultes a luz que emana de tuas mãos, (você sabe, governas a mudança, viste no sonho como movias a mesa e a trazias de volta até o ponto desejado), caso contrário, Saturno saberá e te devorará até essa luz. Então aceite o sacrifício de Saturno: isso é um desafio, ele não aceita ser vencido por pouca coisa. Quer que o combate esteja em seu próprio nível: então a espada, em tuas mãos, que te fora concedida, precisa ser levantada, do amanhecer desde que surja a primeira fagulha de luz, até a noite, quando a lua estiver se debruçando no horizonte. Chame as forças para o seu lado, todas que você conhecer. Tens a Chave nas mãos pois nasceste com ela.
E aí sim, depois disso, os abutres serão enviados para longe e estarás livre.
Iniciada.
Não há morte.

PetrinaDhaza, 3/10/2004 13:51:10

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Correios


"O sorriso mais sincero é o sorriso desdentado"
(Mário Quintana)

Não tinha novidades para contar. A sensação era de carta roubada. Um correio lacrado talvez imaginado. Não entregado, porque nunca encontrado já que o lugar estava "encantado" - era isso que lhe diziam. Não tinha nada lá, teria imaginado? Viam somente ondas que se agigantavam... Quem sabe um contrato de trabalho ao menos... para lhe dar guarida e confirmar sua existência. O estado de fantasma se confirmava? Algumas vezes vultos pisavam-lhe o quarto. Pisadas. Pisadas. Armadilhas se pronunciavam. Ou não...
(Iria conferir no dia seguinte o que estava bebendo).
Esse efeito deveria estar em sua bebida, mas jurava que existia: sentia-se, suava, era constituída de uma carne que não largava os ossos.
Não conseguia sequer inscrever-se em concurso público. Teriam orientalizado o link?
A pista estava perdida. O resgate não acontecia. Sobrevoavam. Ela (a pista) era olhada de cima e só se viam as águas. Mas era alucinação. Jurava que seu juízo estava inteiro e tinha certeza de que ao menos um contrato existiria. E não era um espírito vagante inconformado por ter sido enterrado lentamente na tumba. Não, era sujeito existente. Mas nada do mensageiro. Nada de novidades mesmo. Na segunda-feira tudo se reiniciava e continuava: digo, a esperança de que lhe trariam notícias consistentes.
Não, o terapeuta não resolveria, (como lhe haviam sugerido) preferiria um empregador mesmo, desses de recursos humanos, e nada de lhe chamarem para uma vaga de telemarketing, é certo que uma vez passara por essa estação mas fora algo provisório, ficaria enervada se tal acontecesse e sorriria entredentes, mas disfarçaria sua desfaçatez com um sorriso cúmplice, não seria bom deixar uma má impressão...
Porque somente pretendia (ora!) trabalhar utilizando seu curriculum, colhendo o que plantara, não seria essa a lógica? Mas existiam respostas que ainda não havia compreendido nem recolhido em sua modesta investigação. Travara. Parada obrigatória para o pensamento crítico.
Sobre o lance dos chips, parece que (Dieu merci!) já tinham lhe desprezado, havia sido honrosamente excluída dessa fabulosa pesquisa. Inclusiva comentara que nem tinha autorizado pesquisa nenhuma com seu corpo. Quem sabe aquele empregador mudo agora lhe chamasse. Respondeu que "não, não fazia parte disso". E tinha que olhar nos olhos porque assim que lhe ensinaram uma vez, numa dinâmica. Nada de improvisar respostas. Estudaria as corretas. Lembraria de todos os gestos e atitudes. Faria tudo conforme. Tinha ouvido falar que a dita pesquisa era para produzir um tal de remédio para ressecamento vaginal, mas também lhe disseram em surdina que a última versão desse medicamento apenas provocara enjôo e vômito nos casais: porque nao fazia sentido juntar o cheiro de uma com o cheiro de outra.
(Que calafrio, não gosta nem de pensar nesse efeito enjoativo!).
Era membro da ABA: pesquisa com seres humanos deve ser autorizada. Mas cometeu um deslize: acabou comentando tudo com o entrevistador. Este continuara com um olhar impassível e não sabia nem se havia entrado no lugar errado e talvez aquela fosse a porta do psiquiatra, porque são sempre eles que nunca falam nada, parece que tudo ouvem e compreendem e então - concluiu - não sabia muito sobre esses novos recrutadores de recursos humanos. Daí que finalmente ele lhe perguntou se ela possuía ainda algo a acrescentar. Ela respondera-lhe que só queria saber quando começaria na vaga.
(Aprendera essa dica com um amigo).
Seu estado de irônica mudez talvez tenha sido a resposta.
Já em sua casa, na frente, parara um caminhão: mas ele não tinha nada a ver com isso.