quarta-feira, 9 de setembro de 2009

SACRIFÍCIO


“Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
“Que farei eu com esta espada?”
Ergueste-a, e fez-se.”
(Fernando Pessoa,
in Mensagem)


“I have Said to the Worm: Thou art my Mother & my sister.”

(William Blake).

De cabeça para baixo, os abutres comem-te o fígado como se não houvesse fim. Teu ouvido cola-se ao chão e a tudo que desprezaste: a mortalidade, os conflitos, o sofrimento. Agora o Destino te agarra e faz com que esfregues o nariz no chão, para que conheças a realidade da lenta ondulação dos vermes juntamente com a vida dos insetos. E nem podes gritar: roubaram-te a voz. Então simplesmente ficas e abordas este abismo. Encontrarás a inspiração nessas profundezas infernais. Sim, aceitas o sacrifício e o experimentas como uma iniciação. Mais uma morte.
Já dentro do templo, ultrapassaste o limiar, agora – lá dentro – querem ainda cortar-te a cabeça, e depois disso, arrancar-te o coração. Se conseguirem, ficarão extasiados e gargalharão por muitos séculos até que o portal entre os mundos se abra novamente e outro seja enviado.
Com as sombras lutando para te derrubarem, invocas todos os dias a Luz Maior e eles se afastam, furiosos. Você olha e vê que só a pedra negra afunda na água, não você, o sacrifício. Há dias que clamas por nossa ajuda e nós te atendemos e levamos embora toda energia enviada para que percas a rota. Você sabe: a medida que sobes, desfolha-te, perdes cada vez mais partes da vestimenta. Então já chegaste na encruzilhada e te despersonalizaste até onde fora possível. Passaste a andas nua. Pelas ruas, na multidão. Não sabia quem não conhecia o ver, mas desde então só caminhavas nua. De manhã, de noite, adquiriste a nudez como verdade. Mas irás além disso, dessa nudez, e agora te restam os cabelos e até o fim eles expressarão o retrato da tua alma, refletindo o sol ou rechaçando Saturno. Escuta isso, dependurada e presa como estás aí agora mesmo: sobre Saturno, é bom que se diga, foi ele quem te ordenou agora esta execução e é ele quem passeia pelos jardins e olha se fazes ou não a tarefa: ele quer te engolir como devorou a todos os seus filhos – só para que não perdesse o poder de sua mão. E você planta o milho, ele cresce, a terra é fértil, porque nas tuas mãos há fogo. E Saturno, aflito, sabe disso tudo e não aceita a velhice, não aceita que chegou o fim de seu reinado. Agora é Júpiter quem irá reinar - assim sempre foi a história - e será preciso que ocultes a luz que emana de tuas mãos, (você sabe, governas a mudança, viste no sonho como movias a mesa e a trazias de volta até o ponto desejado), caso contrário, Saturno saberá e te devorará até essa luz. Então aceite o sacrifício de Saturno: isso é um desafio, ele não aceita ser vencido por pouca coisa. Quer que o combate esteja em seu próprio nível: então a espada, em tuas mãos, que te fora concedida, precisa ser levantada, do amanhecer desde que surja a primeira fagulha de luz, até a noite, quando a lua estiver se debruçando no horizonte. Chame as forças para o seu lado, todas que você conhecer. Tens a Chave nas mãos pois nasceste com ela.
E aí sim, depois disso, os abutres serão enviados para longe e estarás livre.
Iniciada.
Não há morte.

PetrinaDhaza, 3/10/2004 13:51:10

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