sábado, 26 de janeiro de 2008

A Carta

Foto 4: P.I.G.S. "Esperança". Rio de Janeiro, 2008.


"Com as lágrimas do tempo e a cal do meu dia eu fiz o cimento da minha poesia".
Vinícius de Moraes

Então o estranho deu-lhe a carta no caminho e pediu-lhe que entregasse numa cabana próxima à sua. Nem teve dúvidas, não lhe seria nenhum trabalho...
O caminho foi, ao contrário de suas tolas expectativas de menino, longo e árduo. Ventava muito e ao longe ouvia-se o uivo de muitos lobos. Sequer sabia que havia lobos naquele território. Não sabia também daqueles rastros, daquelas rotas, daqueles ventos. Quase nada sabia. Só sabia sorrir e brincar. Não encontrou aquela casa...nem o estranho velho voltou a rever. Na noite, somente trevas e os sons incompreensíveis da natureza. E nada acontecera. Nenhuma revelação. E a carta em suas mãos, tão convidativa...mas não! Jamais violaria uma correspondência. Então olhou em volta, constatando mais uma vez o engano. Decidiu largá-la ali mesmo. O velho decerto havia se enganado. Deixou-a abaixo de uma pedra colossal. Perto do Monte Fuji. E partira.
Cresceu. Viveu. Tornou-se tão grande que lhe era então impossível continuar naquela aldeia. Todos reconheciam isso e lhe deixaram partir. Pegou então seus poucos bens e embarcara no navio.
Anoiteceu. Amanheceu e anoiteceu de novo. A vida lhe trouxera alegrias, tristezas, descobertas, sempre muito longe de sua aldeia. Mas aquele sol ele trazia em toda parte dentro dele, aquele entardecer que só existia no seu lugar.
Um dia então, na Grande Cidade, teve notícias de que uma descoberta havia se realizado sob o monte Fuji. Estremeceu. Não podiam! Aquele tesouro era só seu. A ele tinham confiado!
Então adoeceu, chegou a delirar à noite de febre: uma mulher toda de preto mexia em seus armários. Tentava-lhe tirar a vida, mas ele lutava e lutava! Porque a vida era sua então! Os cavalos que vieram lhe carregar à noite tiveram que desistir e partir, porque batalhara a noite toda e ganhara sua vida de volta!
Despertara. Estava vivo. Parecia ter vencido. Havia gritado bastante com aquela misteriosa mulher e pelo jeito havia vencido a batalha já que no final ela lhe entregara, mesmo contrariada, todos os frutos doces que ela havia tomado para si, admitindo que eles lhe pertenciam.
Assim que ganhara forças, mesmo contra a vontade de todos, retornara à sua aldeia e fora praticamente voando, correndo, correndo – feliz – pois a cada vez que se aproximava do monte, sentia estar retomando algo seu...
Abaixo do monte a carta ainda estava intacta. Não, a tal exploração não conseguira entrar no Monte proibido. Talvez tivesse apenas se aproximado e alardeado aquilo como uma conquista. Apesar dos anos lá estava ela. Com muito cuidado ele a abrira, parecia que a qualquer momento ela se esfacelaria em suas mãos. Não foi o que aconteceu. A mensagem estava escrita em letras góticas, desenhada a bico de pena, e era:



“Esta é a história da sua vida.
...
Você reencontrou seu destino.
Veja você, inteiro.
No final, a morte”.



Mas as mensagens mudavam a toda hora que tentava fixar melhor seus olhar, como fantásticas partículas. Dançavam assim que se aproximava melhor delas para decifrá-las.
Então até que viu seu próprio rosto, depois seu próprio “eu”, trajado como um guerreiro, lhe fixando um olhar firme. Teve medo de si próprio. A imagem se desvanesceu. Após ele mesmo, viu uma águia, depois as imagens foram freneticamente se sucedendo umas às outras....
Uma súbita sensação tomou-lhe conta da alma, parecia-lhe que iria perder ar e desfalecer. A visão final que teve foi horrenda, mas enfrentou-a mesmo assim. Era só maya. A criatura horrenda então lhe sorrira. Parecia que o inferno alucinatório havia passado.
Então depois viu-se num barco, num nevoeiro. Sentia-se em paz enfim. De fato, sua viagem apenas continuaria.
Retomara o rumo.

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